A edificação onde funcionava a pousada Garoa, na Avenida Farrapos, em Porto Alegre, estava em situação irregular por não ter o Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) do Corpo de Bombeiros para funcionamento como hospedaria. Apesar das flexibilizações que sofreu, a Lei Kiss, se tivesse sido cumprida nos seus termos atuais, teria minimizado os estragos da tragédia que deixou 10 mortes e 15 feridos na madrugada de sexta-feira (26), no incêndio com maior número de mortes em Porto Alegre desde 1976. Essa síntese é defendida por especialistas ouvidos pela reportagem.
Em novembro de 2022, um projeto de lei de iniciativa do Palácio Piratini foi aprovado na Assembleia Legislativa para modificar a Lei Kiss e acabar com a necessidade de emissão do alvará, chamado de Certificado de Licenciamento do Corpo de Bombeiros (CLCB), para empresas com classificação de risco de incêndio de grau baixo ou médio, com área total de até 200 metros quadrados. À época, o governo estadual estimou que empresas inscritas em 730 CNAEs (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) ficariam dispensadas de obter o certificado.
No entanto, a pousada não se enquadra nos critérios da flexibilização, por funcionar em um prédio de três pavimentos. Embora não tenha sido trazida a público a planta do imóvel, engenheiros e arquitetos asseguram que o edifício tem mais de 200 metros quadrados. Isso é determinante no apontamento de que a pousada teria de observar a Lei Kiss e ter um PPCI completo.
— Aquela edificação tem, com certeza, mais de 750 metros quadrados. Não se encaixa na flexibilização de 2022 da Lei Kiss. A pousada teria de apresentar um plano aos bombeiros, que fariam a avaliação e emitiriam um certificado de aprovação do PPCI. Depois disso, desenvolveria o projeto executivo do PPCI e faria a obra de execução, sob coordenação de profissional habilitado. Quando tudo estivesse implementado, chamaria a inspeção dos bombeiros. Caso tudo ficasse ok, seria feita a emissão do alvará — detalha João Vivian, vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros (Senge-RS).
O arquiteto Evandro "Babu" Medeiros, membro do Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS), corrobora a estimativa de que o ambiente tem mais do que 200 metros quadrados. A necessidade de ter PPCI, cotejada com as normas em vigor da Lei Kiss, obrigaria a pousada a ter itens como hidrantes, alarme de detecção e mangotinhos —mangueira mais larga do que a de jardim, utilizado em combate a chamas.
Revestimentos anti-incêndio
Os especialistas atentam para outra previsão da Lei Kiss: a pousada deveria ter controle de materiais de revestimento e acabamento. Isso implica adotar estruturas adequadas, menos inflamáveis, para o piso, paredes, teto e telhado. O relato de um dos sobreviventes também indica que a pousada tinha estruturas em madeira comum, sem tratamento anti-incêndio.
— O conceito de controle de materiais foi introduzido de forma mais rigorosa pela Lei Kiss e permanece valendo. Se a gente pensar num imóvel com divisórias de madeira, isso é carga combustível. Ajuda a propagar o incêndio — diz Medeiros.
Para Vivian, os elementos previstos em lei conteriam a tragédia.
— Com certeza, não aconteceria o estrago que houve. A edificação estava irregular e apresentava risco à vida — avalia o dirigente do Senge-RS.
O entendimento é de que, neste caso específico, as flexibilizações feitas ao longo do tempo na Lei Kiss, originalmente aprovada em 2013, não abriram diretamente uma brecha para o ocorrido, e sim que a legislação em vigor foi descumprida.
PPCI aprovado para operar como escritório
A pousada teve um PPCI aprovado em 2019 para operar como escritório, mas não havia nenhuma liberação para operação de hospedaria.
Apesar da irregularidade quanto ao PPCI, a pousada Garoa tinha registro na prefeitura de Porto Alegre para funcionar como alojamento.
A Emissão da Autodeclaração de Dispensa de Alvará, que classifica a pousada em baixo risco, dispensa a obtenção de autorização formal de funcionamento mediante procedimentos de fiscalização. Isso é permitido desde 2020, quando foi sancionada a lei que ficou conhecida como "declaração municipal de liberdade econômica".
No artigo quarto, é definido como direito de toda pessoa "desenvolver atividade econômica de baixo risco sem a necessidade de atos públicos de liberação". A norma defindiu como "atos públicos de liberação", os quais passaram a ser dispensados, as licenças, alvarás, credenciamentos, estudos e planos, entre outros itens.
A lei, de autoria dos ex-vereadores Ricardo Gomes (PL), atual vice-prefeito, Pablo Mendes Ribeiro (MDB) e Felipe Camozzato (Novo), foi concebida para adequar Porto Alegre à lei federal 13.874, de 2019, conhecida como "Lei da Liberdade Econômica". Outros municípios e Estados promoveram legislações locais semelhantes para fazer a adequação.
Para os especialistas, a situação cria conflitos normativos. Enquanto a Lei Kiss, estadual, indica que a pousada deveria ter PPCI, a regra municipal oferece um sistema autodeclaratório em que obrigatoriedades são dispensadas.
— O artigo 5 da Lei Kiss (14.376/2013) diz que as prefeituras não podem autorizar o funcionamento sem o alvará de prevenção contra incêndio — diz Vivian, acentuando a contradição normativa.
Aprovada em 2013, Lei Kiss foi flexibilizada
O episódio da pousada Garoa volta o debate para além dos descumprimentos da lei, mas também para os abrandamentos. O ano de 2013 ficou marcado pela tragédia da boate Kiss, em Santa Maria. Um incêndio no interior do estabelecimento matou 242 pessoas.
Naquele mesmo ano, uma comissão especial foi criada na Assembleia Legislativa para revisar critérios legais de proteção a incêndios. Aconteceram diversos debates, foram escutados técnicos de referência no assunto e, deste trabalho, acabou aprovada, em dezembro de 2013, a Lei Kiss, de autoria do ex-deputado estadual Adão Villaverde (PT).
De forma sucinta, a norma exigia fiscalizações, licenciamentos e sanções para infratores. Para definir critérios de proteção anti-incêndio, o texto considerou, além de altura e área do imóvel, itens como o tipo de uso, a capacidade de lotação e o potencial calorífico. Locais de armazenamento de materiais inflamáveis, como madeira e papel, por exemplo, tinham regras mais rigorosas.
— A lei era justa. Se cobrava mais de uma fábrica de fogos de artifício do que de uma fábrica de gelo. Era exequível, mas se criou uma ideia de que a lei engessava (os empreendimentos). As sucessivas flexibilizações descaracterizaram a lei. Ela foi vilipendiada. Um dos componentes dessa infeliz tragédia (na pousada) foi esse processo. A centralidade da lei era a prevenção — reflete Villaverde, que é engenheiro e, atualmente, professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação na Escola Politécnica da PUCRS.
Logo depois de aprovada e sancionada, a Lei Kiss passou a ser avaliada como se tivesse um rigor exacerbado, que inviabilizaria a emissão de PPCI para uma série de empreendimentos. Os defensores das flexibilizações argumentaram nos últimos anos que era necessário dar mais agilidade aos processos, com desburocratização e manutenção dos principais mecanismos de segurança. Os críticos das mudanças, em geral, dizem que os afrouxamentos atendem a pressões por redução de custos e trazem riscos à vida.
Flexibilizações na lei ocorreram em mais de uma ocasião, como em 2016 e 2022. Foram modificados os prazos para a renovação dos alvarás de proteção contra incêndio. Nos casos em que o documento valia por um ano, passou para dois anos. E, nas ocasiões de três anos de validade, o indicador subiu para cinco anos.
Essa questão da boa fé é ingênua e inadequada. Não é duvidar das pessoas, mas vemos os casos se repetirem.
EVANDRO "BABU" MEDEIROS
Membro do Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS)
Para edificações de até 200 metros quadrados, em 2016, passou a ser admitido o sistema de autolicenciamento e de emissão do CLCB via internet. Nos casos de renovação do alvará, deixaram de ser exigidas as anotações de responsabilide técnica (ARTs) de engenheiro ou arquiteto. Mais recentemente, em 2022, a obtenção do documento foi dispensada para as atividades de baixo e médio risco, observado o critério de tamanho máximo de 200 metros quadrados.
Medeiros considra que os métodos autodeclaratórios de licenciamento, baseados no princípio da boa fé de quem abre um negócio, não estão trazendo bons resultados. Outro aspecto relevante é que os modelos de autolicenciamento e de dispensa de alvará não eximem um estabelecimento de observar as normas de prevenção de incêndio, mas a efetiva adoção dos mecanismos de segurança fica a critério do empreendedor, sem a obrigatoriedade de passar por uma fiscalização.
— Isso permite que as pessoas mintam ou omitam as condições reais dos seus estabelecimentos. Essa questão da boa fé é ingênua e inadequada. Não é duvidar das pessoas, mas vemos os casos se repetirem. Entendo que o principal ponto é que todos os projetos deveriam passar pelo Corpo de Bombeiros — diz Medeiros.
A Lei Kiss também teve adiamentos para a adequação dos prédios já existentes antes da sua sanção, em 2013. Originalmente, a previsão era de que edificações antigas deveriam ter o alvará em cinco anos, até dezembro de 2018. Já aconteceram três ampliações. A última delas, em dezembro de 2023, estabeleceu prazo até dezembro de 2026 para a execução do PPCI e a emissão do alvará em edificações anteriores à legislação.