A pousada que pegou fogo na madrugada de sexta-feira (26), provocando a morte de 10 pessoas e deixando pelo menos 15 feridos faz parte de uma rede chamada de Pousada Garoa. Com uma câmera escondida, a RBS TV entrou em outras pensões mantidas pela empresa.
Quem acessa o site da rede depara com quartos simples, limpos e bem mobiliados. O destaque é o custo acessível, a partir de R$ 550 mensais. Mas, ao ingressar nos prédios, a realidade é outra.
Uma das pensões da rede fica na Rua José do Patrocínio, no bairro Cidade Baixa. A mobília é composta por um colchão velho, que parece estar apodrecendo, e um pequeno armário. O cheiro é forte no cômodo. Quase na frente da porta do quarto, há lixo no corredor.
— É só dar uma limpadinha que fica de boa, mas esse é o quarto que tenho disponível atualmente — diz o atendente.
O vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros do RS (Senge), João Leal Vivian, examinou as imagens. Ele acredita que o imóvel pode ter sido uma residência, transformada em pensão.
— A adaptação ou a mudança de ocupação de uma edificação é muito relevante em qualquer projeto de segurança contra incêndio. Ele vai por um caminho ou vai pelo outro — explica.
Em uma outra pousada, na Rua Júlio de Castilhos, no Centro Histórico, o preço dos quartos disponíveis é mais alto, R$ 850. O cômodo tem uma cama e um armário. Não há nenhum extintor de incêndio no corredor do andar, apesar de existir um suporte para o equipamento.
— Percebe-se ali uma falta do equipamento — afirma o vice-presidente do Senge.
Incêndio na unidade da Farrapos
Incêndio deixou quantas vítimas?
Dez pessoas morreram no incêndio. Lúcio Junes da Silva, tenente-coronel do 1º Batalhão do Corpo de Bombeiros, disse que encontrou corpos carbonizados na propriedade. Duas vítimas estavam no primeiro andar, cinco no segundo e outras três no terceiro pavimento.
Outras 15 pessoas ficaram feridas. Conforme o boletim da Secretaria de Saúde da Capital, pelo menos duas delas seguiam com estado de saúde considerado grave no início da noite desta sexta.
O que se sabe sobre a pousada?
A prefeitura de Porto Alegre tinha convênio com a Pousada Garoa. O local era vinculado à Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e servia como abrigo para pessoas de situação de vulnerabilidade. No local, havia 60 vagas divididas em dois prédios, das quais 16 eram custeadas pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
Apesar disso, o local funcionava também via aluguel social e atendia pessoas sem qualquer vínculo com a prefeitura que procuravam moradia a baixo custo.
Moradores contam que região onde ocorreu o incêndio na pousada virou "cracolândia", com drogas, sujeira e prostituição.
A pousada tem outros quatro endereços cadastrados em Porto Alegre com este mesmo nome. Dois deles ficam no bairro São João, um no Floresta e um no Centro Histórico.
Qual a ligação da pousada com a prefeitura?
A Pousada Garoa teve o contrato renovado pela prefeitura em dezembro do ano passado. Na ocasião, o vínculo foi estendido por mais 12 meses, segundo o colunista Jocimar Farina. O contrato original foi assinado em novembro de 2020 com duração de seis meses e posteriormente renovado de forma repetida.
O documento previa a contratação de vagas de hospedagem para atender a Fasc. O público-alvo era a população mais vulnerável, que sofre risco social como desemprego e dificuldades de acesso às demais políticas públicas.
Pelo período inicial contratado, a empresa receberia até R$ 197 mil para 360 vagas. Na renovação do vínculo, em dezembro do ano passado, o valor foi revisto para R$ 2,70 milhões.
O serviço de hospedagem deveria prever distanciamento de 1,5m. Os hóspedes deveriam ter atendimento de necessidades fisiológicas e de higiene pessoal, com privadas e chuveiros com água quente, além de materiais de banho e higiene como toalha, sabonetes, papel higiênico, roupa de cama. Os quartos deveriam ser ventilados. A pousada também deveria realizar serviço de sanitização, desinsetização e desratização em todos os ambientes do estabelecimento.
Local tinha PPCI?
O local não possuía Plano de Proteção contra Incêndio (PPCI) para funcionamento de pousada. Em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, o comandante do Batalhão Especial de Segurança Contra Incêndio do Corpo de Bombeiros, tenente-coronel Joel Dittberner, afirmou que o prédio onde funcionava a pousada teve um PPCI aprovado em 2019 para que operasse como escritório.
— Na época, os responsáveis pelo local encaminharam o PPCI para o Corpo de Bombeiros, ele foi avaliado e aprovado naquela época, mas com o uso específico de escritório. E nesse momento, durante o atendimento da ocorrência, se tratava de uma pousada. As características são diferentes, e, com isso, a gente pode dizer que o local realmente não tinha PPCI, porque o PPCI da época não teria nenhuma validade para esse tipo de empreendimento — afirmou o tenente-coronel.
Ainda conforme Dittberner, os donos do estabelecimento nunca acionaram a corporação para que fosse feita uma vistoria no local, o que permitiria a emissão do alvará. Além disso, nunca teria tido denúncias a respeito da falta de PPCI do local. Ele disse ainda que a empresa chegou a ser notificada em 2022 por irregularidades em outra unidade da rede.
Pousada tinha autorização para operar?
A Pousada Garoa, contudo, tinha autorização da prefeitura para funcionar como hospedagem. Consulta realizada no site da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (Smdet) mostra que a empresa tinha a documentação necessária para atuar como alojamento.
Emissão da Autodeclaração de Dispensa de Alvará, que considera a pousada como de "baixo risco", dispensa a obtenção da autorização de funcionamento. Uma lei municipal de 2020 flexibilizou a documentação exigida.
O gestor da pousada, André Luís Kologeski da Silva, afirmou que a empresa possui “todas as documentações que a legislação exige”, e que irá apresentá-las às autoridades. Conforme Silva, a rede existe desde 2010 e possui 35 unidades em Porto Alegre.
Durante entrevista coletiva realizada nesta sexta-feira (26), o prefeito evitou entrar na discussão sobre a falta de PPCI. Na avaliação de Melo, isso é uma responsabilidade da empresa e é prevista em lei estadual.
Havia a necessidade de fiscalização?
O vice-presidente do Sindicato de Engenheiros do Rio Grande do Sul (SENGE-RS), João Vívian, falou ao programa Gaúcha Mais, da Rádio Gaúcha, sobre as normas de segurança e prevenção após o incêndio que atingiu a pousada Garoa. Questionado sobre o modelo atual, em que não há necessariamente fiscalização presencial para a liberação de um empreendimento, Vívian coloca diz que a ida de um fiscal no local poderiam ter evitado o ocorrido:
— Se fosse no modelo de emitir alvará somente com a fiscalização da prefeitura, possivelmente não teria passado. Teria sido fiscalizado se (as necessidades) estão em prática e não teria tido essas autorizações.
Segundo Vívian, o local teria condições de operar de acordo com as normas atuais, embora não tenha cumprido as implementações necessárias de proteção.
— Dentro da regra atual, o local não estaria irregular, mas com falta de adequações: extintores de incêndio, sinalizações de emergência e treinamentos. O problema está na implantação (destas medidas protetivas). Pelo que a gente escuta, de fato não houve essa implantação na pousada — disse o vice do Sindicato.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS) emitiu uma nota pública, no final desta sexta-feira, manifestando a importância do PPCI para que se evitem casos como este, da Pousada Garoa, e como da Boate Kiss:
"Precisamos falar sobre o fato da Lei Kiss ter cumprido dez anos sendo aplicada apenas parcialmente, por força de sucessivos adiamentos que postergaram sua aplicação integral. Da mesma forma, alertamos para a importância de que o licenciamento de qualquer atividade seja feito por profissionais qualificados, que possam assegurar o atendimento de padrões mínimos de segurança contra incêndios e de habitabilidade. Tragédias como a da Boate Kiss e da Pousada Garoa seguirão acontecendo se as autoridades continuarem adiando esse debate", diz parte da nota.
Como está a investigação sobre o caso?
Além de apurar as causas do incêndio, a Polícia Civil também trabalha para descobrir a responsabilidade pelo funcionamento do local.
— Vamos analisar se houve falha de fiscalização. Se poderia um contrato da prefeitura com uma empresa que não tem PPCI. Isso tudo vai ser apurado no curso do inquérito — destacou Cléber dos Santos Lima, diretor da Delegacia Regional de Porto Alegre em entrevista ao Timeline, da Gaúcha.
A Defensoria Pública do Estado também divulgou nesta sexta-feira que vai abrir um procedimento para analisar possíveis irregularidades na pousada. O anúncio foi feito após uma audiência com moradores de unidades da pousada Garoa, além de deputados, vereadores e representantes de movimentos sociais. Os participantes compartilharam relatos e denúncias referentes às condições precárias do local.
Também nesta sexta-feira, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP) instaurou um inquérito civil sobre o caso. Conforme o Ministério Público, serão verificadas as medidas adotadas pela prefeitura da Capital e pela Fundação de Assistência Social e Cidadania em relação ao incêndio.