Pichações, placas com a inscrição de aluga-se, sujeira, imóveis vazios, pessoas em situação de rua, traficantes, usuários de drogas, prostituição, ladrões e desocupados. A Avenida Farrapos é o retrato da degradação em Porto Alegre. O trecho do bairro Floresta em direção ao Viaduto Conceição, onde se situa a pousada Garoa, local do trágico incêndio da madrugada desta sexta-feira (26) que deixou 10 mortos além de ao menos outras 15 pessoas feridas, é um dos pontos mais perigosos.
Morador há três anos de um edifício a poucos metros de distância da pousada, Odil Aquino Alves, 60 anos, define em três palavras o atual cenário da Farrapos:
— Virou uma cracolândia.
Segundo Odil, o que mais se vê nas imediações são o tráfico de drogas e a prostituição. Também ressalta os recorrentes assaltos na região.
— Acho que o começo para mudar essa realidade seria achar um lugar para todos esses usuários de drogas — diz.
A situação é conhecida das autoridades. A Polícia Civil reconhece que a região é uma espécie de cracolândia, especialmente no entorno da Estação Rodoviária.
— Não é um fato desconhecido o tráfico de drogas naquelas imediações. É nesta região que mais prendemos gente nos últimos anos. Não é um trabalho apenas policial. Também é uma questão de saúde pública — afirma o delegado Cléber dos Santos Lima, diretor da Delegacia Regional de Porto Alegre.
Nesta sexta, a reportagem de GZH circulou pela Avenida Farrapos e conversou com moradores e comerciantes. Praticamente todos mencionaram o tráfico de drogas e os dependentes. Mas é possível perceber que o problema é mais abrangente e passa até pela desocupação de muitos espaços comerciais.
Construída e inaugurada com pompa e circunstância pelo presidente Getúlio Vargas em 1940, a Avenida Farrapos cruza diversos bairros da Capital (Floresta, Navegantes, São Geraldo, Farrapos e Humaitá). A via liga o Centro Histórico à Zona Norte. Muitos entram ou saem da cidade seguindo por seu trajeto de 5,5 quilômetros.
Porém, se houve um tempo de glamour na Farrapos, esse período ficou no passado. Nos últimos anos, o panorama mostra prédios decrépitos e caindo aos pedaços com evidentes sinais de abandono, além de muitos espaços vazios para alugar e estabelecimentos de reputação duvidosa.
O historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Charles Monteiro contextualiza o processo que a Avenida Farrapos passou ao longo das décadas. Conforme o docente relata, a via foi aberta dentro de um conjunto de planos urbanísticos no sentido de desafogar a circulação do Centro, e ligar com a área onde estavam situadas as indústrias. No começo, era uma avenida moderna, porque havia faixas de cimento e os carros podiam andar em alta velocidade. Com a metropolização, a indústria foi sendo deslocada para fora da Capital. E o cenário também sofreu transformação.
— Com a saída das indústrias, a região começou a perder os habitantes e ficou com os prédios abandonados. Na (Rua) Voluntários da Pátria, começamos a ver os hotéis ligados à prostituição. Essa questão foi criando uma degradação em termos de estética de cidade. A Farrapos tem muita vida, mas por ter menos habitantes e comércio, houve esse acréscimo de violência e de criminalidade — reflete.
Dados do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis (Secovi-RS) evidenciam que em 2023, foi registrada a menor quantidade de salas comerciais alugadas nos bairros Floresta, São Geraldo e Navegantes dos últimos seis anos. Na comparação do total de salas alugadas em 2023 com cinco anos atrás, ocorreu uma redução de 76% nessa região da Capital.
O Secovi-RS possui outros indicativos. Apenas no bairro Floresta, em março de 2014, havia 127 salas para locação. Uma década depois, em março de 2024, 307 espaços estão vagos. Isso representa um aumento de 142% na mostra de imóveis disponíveis para aluguel. É a prova numérica de que ninguém quer se estabelecer em um problemático ponto da cidade.
O presidente do Secovi-RS, Moacyr Schukster, comenta sobre o cenário:
— Consideramos que enquanto as transversais e a própria avenida não tiverem um outro tratamento, isso não vai se modificar. O que se espera é que tais medidas ocorram logo. Porque muitos imóveis estão se degradando e isso não é bom.
Virou uma cracolândia.
ODIL AQUINO ALVES
Morador da Avenida Farrapos
A quadra da pousada Garoa fica situada no bairro Floresta. Na esquina da Rua Garibaldi com a Farrapos há uma loja de roupas. Ao lado fica um prédio residencial chamado Edifício São Cristóvão. Em seguida se vê uma sala vazia. As próximas duas portas, 305 (local do incêndio) e 309 são da pousada. Seguindo na direção bairro-Centro, há a ocupação urbana Sepé Tiaraju, um posto de gasolina e um imóvel com placa de "vende-se". Neste último prédio, antes funcionava o CPC Concursos.
No outro lado da via, também no sentido da Rua Garibaldi para a Barros Cassal, a situação é curiosa por abrigar tantos endereços diferentes. O imóvel do número 354 está com a placa de "aluga-se". Encostado fica o Night Club. A reportagem apurou junto ao proprietário dos imóveis dos números 334 e 336 que ele tenta retirar invasores do local. Este homem, que não quis se identificar por receio de represálias, vive no número 338, onde trabalha como serralheiro. Depois vem um pequeno estacionamento, a Igreja Pentecostal Assembleia de Deus, a tradicional loja Zaniratti Audiovisuais, um prédio residencial, a Tabacaria Paromas e o restaurante A Baronesa.
Dessa forma, a pousada fica localizada em um trecho em que há ocupações nos dois lados da via. Na quadra posterior que vai da Barros Cassal até a Rua da Conceição, há seis hotéis e nenhuma pousada. Pelo menos nenhuma possível de se identificar por quem passa na frente. E muitos prédios estão cobertos por pichações e com visíveis sinais de abandono. Um deles fica no número 122.
O frentista Juliano Simões, 41, trabalha há quatro anos em um posto de gasolina localizado no mesmo quarteirão onde ocorreu o incêndio. Ele conta que há roubo de celulares e muitos casos de uso de drogas e prostituição. E compartilha ainda outro problema social.
— Tem muito morador de rua. Em um nível alarmante — percebe, dizendo que dependentes químicos sempre tentam roubar a loja de conveniência do posto.
A prefeitura da Capital tem o programa +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito. O projeto estabelece regras específicas, além de incentivos urbanísticos e tributários para o desenvolvimento da região compreendida pelos bairros Floresta, Humaitá, Navegantes, São Geraldo e Farrapos.
Entre as melhorias previstas no projeto, estão a qualificação viária e a mobilidade da Avenida Farrapos. Financiamentos do Banco Mundial e da Agência Francesa de Desenvolvimento devem ser utilizados no futuro em ações de mobilidade, acessibilidade, paisagismo e urbanismo tático, mas o documento ainda não foi assinado. Enquanto isso não acontece, a região segue se degradando.
É nesta região que mais prendemos gente nos últimos anos.
DELEGADO CLÉBER DOS SANTOS LIMA
Diretor da Delegacia Regional de Porto Alegre
A aposentada Lindalva Farias, 66, vive há dois anos perto da pousada. Vinda do Recife, capital de Pernambuco, ela diz que os moradores da região sabem que a área é perigosa.
— A situação das pessoas de rua é difícil. Na Garibaldi, tem muita gente na rua — atesta.
O estudante de cinema Gustavo Ramos Estery, 23, vive há um ano na ocupação Sepé Tiaraju. Ele reconhece que a Farrapos é perigosa e já ouviu relatos sobre o que acontecia na pousada incendiada.
— É um inferno ali (na pousada do incêndio). Uma pessoa me disse que tem toque de recolher — assegura.
O estudante leva o debate para o campo político.
— É importante olhar a questão da gestão pública. Pegar morador de rua e colocar em um lugar sem condições. A Farrapos é vista como algo sujo pelo poder público — critica.
A aposentada Rutileni Moraes Vieira, 65, vive há três anos na pousada do número 309, que também é da Garoa. Ambas são interligadas e ficam lado a lado. Ela explica o que faz para não ser incomodada por traficantes e marginais da região.
— Não se misturando com eles (traficantes e marginais) tudo bem. A gente não pode se meter, senão eles matam — receia.
O comerciante José Antônio Zaniratti, 76, atua há 20 anos na Farrapos. Proprietário da Zaniratti Audiovisuais, ele conta que chegou a ter a loja exatamente no endereço do incêndio. Mas agora trabalha no outro lado da via.
— O dia a dia aqui está cada vez mais degradado na Avenida Farrapos, apesar de ela ser uma via de acesso à cidade. Quando essas regiões são abandonadas pelas empresas comerciais, outras pessoas assumem no lugar delas — pensa, acrescentando: — Precisamos trazer empresas de comércio, parte de hotelaria e de supermercados. Porque isso traz circulação. Hoje, os prédios estão caindo e servindo para invasões.
O que diz a prefeitura
A reportagem de GZH tentou contato com a prefeitura para obter uma fonte do Executivo municipal que pudesse falar sobre a questão da situação de abandono da Avenida Farrapos. A resposta foi que não seria possível porque todos estavam envolvidos nos desdobramentos do incêndio.
O que diz a Brigada Militar
A BM informou que não possui estatísticas de criminalidade por rua ou logradouro, mas sim por bairro.
O Comando de Policiamento da Capital da Brigada Militar (CPC) informou que "realiza ações de Policiamento ostensivo e operações pontuais na Capital, utilizando estratégias de acompanhamento diário dos indicadores de criminalidade. Essas ações integradas e de inteligência adotadas pelas forças de segurança resultaram em quedas recorde nos índices de roubo de pedestres e roubo de veículos na capital e em todo o Estado".