Nenhum familiar se apresentou no velório de quatro dos 10 mortos pelo incêndio numa pousada em Porto Alegre, ocorrido na madrugada de sexta-feira (26). Não foram encontrados pelas autoridades e até podem nem ter ficado sabendo da tragédia. A chuva que caia incessantemente e o céu sombrio deste sábado (27) deixaram ainda mais triste a despedida do quarteto de albergados, que foram velados e sepultados no Cemitério São João, Zona Norte da Capital. As homenagens fúnebres foram prestadas por servidores da prefeitura (sobretudo da área de assistência social) e, também, por religiosos.
O incêndio atingiu a pousada Garoa, na Avenida Farrapos, no bairro Floresta. As causas ainda são desconhecidas. No local, havia 60 vagas divididas em dois prédios, das quais 16 eram custeadas pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) para pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Cinco que eram atendidos pela Fasc foram identificados e sepultados, até agora. Silvério Roni Martin, Anderson Gaúna Corrêa, Dionatan Cardoso da Rosa, Julcemar Carvalho Amador e Maribel Teresinha Padilha foram reconhecidos por meio de papiloscopia, ou seja, pelas impressões digitais, que foram comparadas com fichas que eles possuíam nos serviços de assistência social e documentos. Desses, Anderson Corrêa foi sepultado pela manhã, com presença de familiares. Os demais, num enterro coletivo, sem parentes que os velassem.
Os corpos das outras cinco vítimas estão desfigurados e ainda não foi possível identificá-las. O Departamento Médico Legal (DML) tentará fazer isso por meio de exame de DNA ou de arcada dentária. O incêndio é o maior em número de mortes em Porto Alegre desde 1976.
Os mortos foram sepultados em uma bonita área ao ar livre, arborizada, em sepulcros de cimento dispostos próximos um ao outro. O secretário de Modernização e Gestão da prefeitura, Rogério Beidacki, compareceu ao velório coletivo, lamentou o incêndio e diz que serão redobrados esforços para reconhecimento dos cinco cuja identidade continua ignorada. O velório e o sepultamento foram custeados por uma funerária, a Angelus, gratuitamente — até porque nenhum familiar das vítimas se disponibilizou a ajudar. Cada ataúde recebeu uma coroa de flores, com nome.
— Se a gente não puder ajudar essa gente que nada tinha, quem poderá, não é mesmo? — justificou o diretor da funerária, Ary Bortolotto.
Assistentes sociais que conviveram com as vítimas descrevem um padrão em comum. Eram todas pessoas em situação de rua, mas que, em algum momento, concordaram em ir para uma pousada custeada pela prefeitura. Buscavam tratamento para males emocionais e psíquicos. Estavam apartadas de suas famílias e não recebiam visitas de parentes, que sequer apareceram para reconhecer os corpos.
Durante a primeira parte do velório os corpos ficaram sós em duas capelas contíguas, sem visitantes. A ausência de familiares dos mortos pelo incêndio chocou e comoveu pessoas que participavam de outras cerimônias fúnebres, no mesmo cemitério. Pouco a pouco o silêncio foi quebrado pela chegada de alguns servidores da prefeitura, que conheciam as vítimas.
O padre que presidiu as cerimônias fúnebres, Lucas Matheus Mendes (da Basílica das Dores) disse que nessas horas é que deve se apresentar a face da solidariedade.
— Além dos laços de sangue, existem laços de fé e solidariedade entre os seres humanos. Entrego nas mãos de Deus esses quatro irmãos nossos, colhidos deste mundo. É nessa hora que nos damos conta da nossa finitude e podemos reagir de duas formas: com desespero ou com esperança de um mundo mais generoso — recitou o padre, levando às lágrimas muitos servidores que conviveram com as quatro vítimas, em abrigos e pousadas.