Passaram-se mais de 4 mil dias desde que 242 pessoas morreram e outras 636 ficaram feridas no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, na maior tragédia da história gaúcha. Desde aquele fatídico 27 de janeiro de 2013, a sensação, para sobreviventes e familiares de mortos no episódio, é de impotência. Quase nada mudou. O prédio da danceteria, que deve virar um memorial, permanece quase intacto porque é preciso concluir a licitação para construir o jardim naturalista, destinado a local de homenagens. Tampouco existe definição quanto aos culpados pelo desastre na casa noturna. Os quatro acusados (dois empresários e dois músicos) chegaram a ser condenados em 2021, mas o julgamento foi anulado por questões formais e um novo júri, por homicídio, deve acontecer em fevereiro. Até lá, só amargas recordações, resume Gabriel Rovadoschi Barros, presidente da Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Barros e outros novos dirigentes da associação, como Cristiane dos Santos Clavé e Delvani Brondani Rosso, são os primeiros sobreviventes do incêndio a comandarem a AVTSM. Até hoje, as ações na associação eram lideradas por familiares dos mortos. Na prática, todos atuam juntos, mas os que estiveram dentro do incêndio estão na direção agora. As entidades dedicadas a lembrar a tragédia (são várias) organizaram algumas manifestações para marcar os 11 anos do desastre. Entre elas, caminhadas até a boate, leitura de nomes dos mortos em decorrência do incêndio, relatos de sobreviventes (num palco em frente à antiga danceteria) e diversas palestras: de especialistas em legislação sobre incêndio e de familiares de pessoas vitimadas por outras tragédias, como a do incêndio no centro de treinamento do Flamengo (RJ) e do rompimento da barragem de Brumadinho (MG).
Cristiane e Delvani darão seus relatos pessoais, com o título "A vida depois da boate Kiss". A expectativa, tanto deles como dos familiares de vítimas, cresce na medida em que se aproxima o 26 de fevereiro, data prevista para o novo júri dos acusados pela tragédia. Na associação há um consenso: não querem que o julgamento aconteça agora. O motivo é o temor de que uma nova condenação possa ser mais uma vez anulada, em decorrência de recursos relativos ao resultado do primeiro júri, que ainda estão pendentes.
— Tramitam recursos no Supremo Tribunal Federal (STF), tanto pedindo a manutenção da condenação do primeiro júri quanto a anulação definitiva dele. Imagine se, após o novo julgamento previsto para fevereiro, o Supremo decide algo relativo ao primeiro júri? O ideal é que os ministros da Suprema Corte decidam antes e por isso pedimos o adiamento do novo julgamento — explica Gabriel Barros.
O pedido de adiamento conta com apoio do Ministério Público do RS. Périplos por gabinetes em Brasília, pedindo que o novo júri seja realizado só após a decisão definitiva do STF, foram feitos por dois fundadores da AVTSM, Flávio Silva e Paulo Carvalho (ambos pais de vítimas). A decisão está nas mãos do ministro Dias Toffoli.
Todos os acusados como responsáveis pela tragédia estão em liberdade, desde que o primeiro júri foi anulado. São eles dois sócios da Kiss (Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, que teriam feito obras no prédio que impediram a fuga dos frequentadores na hora do incêndio) e dois integrantes de uma banda que tocava na noite da tragédia (Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, que teriam jogado um artefato pirotécnico que gerou o fogo que causou o desastre).
— Não temos receio de um novo júri, acredito que os réus serão condenados novamente. Nós tememos é a frustração, caso o STF mantenha o resultado do primeiro julgamento. Aí, como fica? Uma confusão, passível de recursos e novos adiamentos — resume Gabriel Barros.
Sobreviventes relatam como escaparam
A reportagem ouviu três dirigentes da Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Todos estavam na boate na noite da tragédia. Os três preferiam que o júri fosse adiado, mas querem a condenação dos réus. Confira trechos dos depoimentos deles:
Cristiane dos Santos Clavé, funcionária pública
"Era estudante de Administração e fui na boate a convite, relutante. Perdi mais de 15 amigos e conhecidos, um dos quais tinha me levado na festa. Não fiquei hospitalizada, mas tenho queimaduras no pulmão e desde o dia do incêndio faço tratamento para asma. Inclusive estou em crise, dificuldade de respirar há mais de duas semanas. Faço tratamento contínuo com três especialistas, para tentar melhorar minha respiração.
Perdi muito a memória, mas a noite da tragédia, em si, ficou arquivada na mente. Lembro tudo. Sei cada passo que dei lá dentro e acredito que isso deve ter um porquê. É um dever meu falar. E por isso procuro sempre participar da associação de vítimas. Utilizo minha voz para poder colaborar. Todos os amigos que perdi lá dentro querem que o episódio não seja esquecido, que não se repita".
Gabriel Rovadoschi Barros, psicólogo
"Eu era estudante de Jornalismo na UFSM, tinha 18 anos. Aquele fim de semana foi a primeira vez que entrei numa boate. Fui duas noites seguidas na Kiss, porque conheci uma menina da Zootecnia na sexta-feira e no sábado ela me convidou para voltar lá. Não sabia nem o que era "curtir uma festa", tudo era novidade pra mim. Em determinado momento, a música parou. Como num telefone sem fio, ouvi a palavra "briga" algumas vezes. Vi uma manada humana se deslocando em direção a saída (a mesma que era entrada). Nesse mesmo instante um vão se abriu nessa multidão e eu me coloquei nele. Dei poucos passos e fiquei trancado, porque as portas estavam fechadas. Lembro de sentir o pessoal empurrando e me sentir empurrado, como se várias grandes ondas nos batessem. A fumaça chegou em mim e aí entendi que era incêndio. Como estava no meio da boate, consegui sair. Mas tive de escolher em quem pisar, porque as pessoas caíam próximo da porta. Só consegui escapar porque vi a luz certa. Não cheguei a me ferir, só fui no hospital para conferir a saúde, mas não tive problema físico. Só que o trauma psicológico foi tamanho que fiquei uns oito anos sem falar no assunto. Evitava. Com o tempo, me aproximei da associação e há dois anos formamos uma chapa que foi escolhida para dirigir a entidade. É a primeira formada por sobreviventes. Estamos todos juntos".
Delvani Brondani Rosso, protético dentário
"Eu morava em Manoel Viana e trabalhava na agricultura com minha família. Vim a convite de um amigo da Veterinária para festa na Kiss. Estávamos em sete na boate. Três faleceram. Estava muito lotada a festa. Ao ouvir gritos, tentamos sair, as luzes se apagaram. A situação ficou incontrolável, barulho de vidro quebrando, gritos de desespero. Quando eu fui caindo, já fui me despedindo... da minha família, dos meus amigos. Pedi perdão e desmaiei. Meu irmão me resgatou. Acordei na calçada, muito queimado, 45% do corpo. A camisa grudou na pele. Meu pulmão ficou muito prejudicado, como se fosse fumante. Fiquei dois meses hospitalizado, um mês em coma. As cicatrizes ainda estão por todo o corpo. E dediquei três anos à minha reabilitação. Todos os dias. Não conseguia caminhar uma quadra que faltava o ar e embaçava a visão. Hoje estou melhor".