O Guaíba é um ilustre desconhecido. Essa foi uma das primeiras conclusões a que o engenheiro ambiental Leonardo Capeleto de Andrade chegou ao longo do seu doutorado sobre a poluição das águas que banham Porto Alegre e arredores.
E ilustre, aqui, não é apenas um chavão. O estudo de Andrade pela UFRGS, que já contava com suporte da Universidade da Geórgia na análise de sedimentos coletados em 27 pontos do Guaíba, foi tema de artigo recente na prestigiada revista científica Environmental Monitoring and Assessment (Monitoramento e Avaliação Ambiental), editada pela Universidade de Maine, nos Estados Unidos.
As pessoas não fazem ideia de que a relação entre Porto Alegre e o Guaíba é algo tão singular. O porto-alegrense capta água no mesmo lugar em que a despeja. Mesmo em cidades que coletam água de um rio e despejam seus dejetos nesse mesmo rio, ele é coletado em um ponto mais alto e despejado em um mais baixo. Em Porto Alegre, isso ocorre ao mesmo tempo.
LEONARDO CAPELETO DE ANDRADE
Engenheiro ambiental
O tamanho do desconhecimento foi percebido quando Andrade decidiu incluir em seu estudo uma pesquisa sobre a percepção do porto-alegrense sobre o Guaíba. Questionados sobre os usos que fazem do Guaíba, apenas 52% dos pesquisados responderam "para abastecimento". Já o uso "visual" foi citado por 89% dos entrevistados.
– Fiquei com a convicção de que é enorme o número de pessoas que não sabem que a água das torneiras delas vem do Guaíba. Se eu desconfiasse disso à época, teria feito uma pergunta mais específica – afirma o pesquisador, professor substituto da UFPel até 2018.
Pudera: ao longo das últimas décadas, o Guaíba já foi coberto por um muro, poluído, abandonado e, embora tenha quase 500 quilômetros quadrados de área e seja impactado por mais de um terço do território do Estado, ainda é pouco estudado pelas universidades gaúchas. O último estudo aprofundado sobre o Guaíba era de 2002. Por essas e outras, muitos porto-alegrenses talvez tenham esquecido de que a relação com ele é tão umbilical.
Nesta reportagem, compartilhamos sete curiosidades que surgiram do estudo. Cada amostra de 10 a 15 centímetros de sedimentos coletados no fundo do leito é considerada uma "caixa-preta" que conta a história de pelo menos 10 anos. Os tópicos do texto surgem delas ou da extensa pesquisa histórica que acompanhou o estudo de Andrade. Com vocês, o Guaíba.
1. Polêmicas à parte, trata-se de um lago
Andrade tentou se esquivar da velha discussão se o Guaíba é rio ou lago (ou ainda um estuário). E o fez como GaúchaZH, que chama o Guaíba apenas de Guaíba. Insensíveis a polêmicas gaúchas, os norte-americanos da Universidade da Geórgia, instituição parceira da UFRGS no doutorado de Andrade, estranharam a prática.
– Você precisa chamá-lo de alguma coisa obedecendo a critérios científicos – ouviu.
Bateu-se o martelo por "Lake Guaíba" por ser uma área de acúmulo de água, com afluentes (entradas) e emissários (saídas de transbordamento). Pesa contra a definição como rio a necessidade de curso com fluxo gravitacional até os outros corpos hídricos, como outros rios, lagos e oceanos. O Guaíba, com frequência, inverte seu curso, o que influencia inclusive na deposição dos sedimentos, objeto de trabalho de Andrade.
Simplificando mais ainda, o pesquisador toma de empréstimo uma comparação atribuída ao geólogo Rualdo Menegat, célebre pela autoria do Atlas de Porto Alegre em 1998: o rio é como uma mangueira. O Guaíba é como uma bacia. O fato de ela ter furos, com saídas e entradas, não faz de uma bacia uma mangueira. Há ainda, um componente político:
– O Brasil é um país de rios, não de lagos. Já se tentou chamar o Guaíba de rio com o argumento de que essa designação poderia ajudar a ampliar a área da proteção permanente na sua orla. Esse é um critério que eu, como cientista, não posso usar. Uso lago, portanto, por falta de uma designação científica melhor. Além disso, se o Guaíba é rio ou lago, isso não vai afetar a legislação de proteção porque ela já está definida na Lei Orgânica de Porto Alegre. Precisamos é cobrar que ela seja cumprida.
2. Relação singular com o porto-alegrense
Alguém pode se perguntar o que o Guaíba tem de especial para despertar o interesse de pelo menos duas universidades norte-americanas. A resposta, conforme o pesquisador, passa pela vontade atual da comunidade científica mundial em estudar os impactos da urbanização no ambiente.
Porto Alegre e Guaíba é um caso interessante de ser pesquisado por se tratar de um ciclo fechado. Tudo o que Porto Alegre polui escoa para o Guaíba e, em seguida, volta para Porto Alegre.
– As pessoas não fazem ideia de que a relação entre Porto Alegre e o Guaíba é algo tão singular. O porto-alegrense capta água no mesmo lugar em que a despeja. Mesmo em cidades que coletam água de um rio e despejam seus dejetos nesse mesmo rio, ele é coletado em um ponto mais alto e despejado em um mais baixo. Em Porto Alegre, isso ocorre ao mesmo tempo. Em metrópoles de mesmo tamanho, não me ocorre um paralelo – conta Andrade.
O que isso significa: que não há exemplo melhor para estudar o impacto da urbanização na saúde de uma população e no seu ambiente do que pesquisar o porto-alegrense e o Guaíba.
– O bem-estar de um está diretamente ligado ao outro – resume o pesquisador.
3. Cor escura pode enganar, mas é natural e tem origem no solo
Passados os primeiros meses da comemorada revitalização da orla, GaúchaZH republicou esboços dos projetos e os comparou com a estrutura real. Um dos aspectos que chamam a atenção é a cor azul esverdeada das águas nos projetos em relação ao tom marrom avermelhado do Guaíba de verdade. Os arquitetos poderiam sinalizar, quem sabe, um futuro otimista de um lago completamente despoluído? Segundo Andrade, não.
– A cor atual do Guaíba nada tem a ver com a poluição. É a cor natural do nosso solo, que é muito rico em ferro e não causa qualquer tipo de problema. Seria da mesma cor mesmo se fosse completamente limpo. No ponto em que os sedimentos mostraram menos poluição, na região de Barra do Ribeiro, o Guaíba é da mesmíssima cor achocolatada.
4. Capital aumentou sua parcela de culpa
Convencionou-se dizer que o grande problema da poluição do Guaíba decorre da histórica poluição trazida pelas águas dos demais municípios da Região Metropolitana: os rios dos Sinos, Gravataí e Caí, em volta dos quais a região se industrializou. Próximo ao canal dos Navegantes, une-se o que há de pior de cada um. A qualidade do Guaíba é salva pelo bravo Rio Jacuí, que alimenta 84,6% do lago e contrapõe os demais sujismundos.
Essa batalha continua ocorrendo, mas o principal apontamento do estudo de Andrade é um crescimento preocupante da poluição vinda de Porto Alegre próximo da foz dos arroios Dilúvio, Cavalhada e Salso. A ponto de ser impossível hoje se pensar em despoluir o Guaíba sem tratar esse problema.
Se substâncias perigosas como o cromo ainda aparecem em sedimentos distantes como lembranças dos piores tempos da indústria calçadista, hoje a poluição do Guaíba tem vilões novos em ascensão como o zinco, o cobre e cádmio. E preocupa mais ainda a mais provável origem deles: os veículos de Porto Alegre.
5. Contaminação que nasce nos pneus que circulam na Ipiranga
Pesquisas como essa, a partir dos sedimentos no fundo do Guaíba, são feitas "de trás para frente". Nas amostras aparecem substâncias e, a partir delas, se verificam hipóteses de como elas foram parar lá. Talvez o dado mais curioso desse estudo seja o impacto significativo do fluxo de veículo em avenidas como a Ipiranga para a poluição da água de Porto Alegre.
Zinco, cobre e cádmio, os novos vilões do Guaíba, estão presentes em pneus e freios dos milhares de veículos que passam por uma das regiões de maior densidade demográfica de Porto Alegre. Ou seja, o sofrido arroio Dilúvio não é agredido apenas pelo esgoto que deságua nele, mas também a cada frenagem em cada sinaleira, que libera um pouco de poluição que depois é varrida sem tratamento algum para suas águas.
Os resultados de Porto Alegre se assemelharam a de estudos feitos na China específicos sobre o impacto de rodovias perto de rios.
– E o pior é que um carro elétrico, por exemplo, deixaria de emitir poluentes pelo ar. Mas nesse tipo de poluição o problema não se altera – aponta Andrade.
Despoluir o Guaíba passa, quem diria, por repensar meios de transporte e trânsito.
6. Água já foi melhor, mas já foi bem pior
Naquele questionário em que Andrade averiguou a percepção do porto-alegrense sobre o Guaíba, apenas 17% dos entrevistados disseram acreditar que a poluição no Guaíba vem diminuindo nos últimos anos. Os dados sinalizam que não é uma percepção equivocada.
O Guaíba está poluído, mas já foi muito pior do que é hoje. Se até a década de 1940 os porto-alegrenses ainda curtiam os balneários do Guaíba como veranistas, nas décadas seguintes o lago sofreu com a industrialização. Com ela veio a poluição, o receio e, por fim, a indiferença do porto-alegrense sobre as condições das suas praias.
O jogo começou a ser virado pelo movimento ambientalista a partir da década de 1960. No mesmo ano em que José Lutzenberger conseguiu interditar a Borregaard por contaminar o ar e água do Guaíba, em 1973, a freeway seria inaugurada, e os porto-alegrenses deixaram de vez de se importar com a balneabilidade de suas praias. Restou somente a preocupação com a água da torneira. E ela melhorou bastante desde a década de 1990, quando, no embalo da Eco 92, a legislação ambiental avançou no Brasil.
– O Guaíba está menos poluído do que eu imaginava. Alguns companheiros de profissão aparentaram até certa decepção por eu não ter levantado dados mais alarmantes (risos). Mas é muito importante ter isso como um incentivo para seguir melhorando, e não como um salvo-conduto para continuar poluindo por mais tempo.
E a melhora se deu por um grande mérito do Guaíba. Quando ajudado, ele se cura sozinho.
7. “Torneiras de poluição” precisam ser fechadas
A saúde de um lago como o Guaíba se detecta de diferentes formas. Uma delas é a chamada demanda bioquímica de oxigênio, que mede a necessidade do lago de oxigênio para decompor matéria orgânica. Simplificando, o quão bem ele está respirando.
– No Guaíba, nos pontos em que a gente mediu, ele está com a oxigenação boa. Ele está longe de estar morto, tem muita vida ali dentro. Tem muitos biguás, muitos peixes, tem anfíbios. Até no arroio Dilúvio se observa peixes, garças, tartarugas. Mas não é porque não está morto que não tem por que se preocupar – alerta Andrade.
O Guaíba tem a favor de si contar com o próprio fluxo das águas para curá-lo. Basta estancar as "torneiras de poluição" para que o Guaíba melhore por conta própria com a passagem dos anos. Nesse sentido, o pesquisador elogia o impacto de iniciativas como o Pró-Guaíba e o Projeto Integrado Socioambiental (Pisa), com algumas ressalvas:
– O Dmae (Departamento Municipal de Água e Esgotos) se orgulha de o Pisa ter elevado o tratamento do esgoto acima de 60%, com capacidade de elevar esse número. Mas em uma cidade que capta para consumo a mesma água que coloca fora, não pode ser admissível nada abaixo de 100%, entende?
Para melhorar as condições do Guaíba e, consequentemente, da vida dos porto-alegrenses, Andrade aponta a preocupação com o esgoto domiciliar como um bom começo:
– Bem ou mal, as empresas obedecem a regras ambientais e passam por fiscalizações. Agora, quantas vezes alguém já bateu na tua porta e verificou a descarga do teu condomínio? E considera que a cada R$ 1 investido em saneamento, de R$ 4 a R$ 8 retornam em economia no sistema de saúde. Em uma cidade que funciona em um ciclo fechado com a sua água como é Porto Alegre, mais do que benéfico, isso é fundamental.