Surpreendido no começo da manhã de quarta-feira (3) por uma operação de busca em apreensão em sua casa, em Brasília, o ex-presidente Jair Bolsonaro agora deve acertar quando prestará depoimento à Polícia Federal (PF) no curso da investigação sobre fraudes envolvendo registros de vacinação em sistemas informatizados do Ministério da Saúde.
Bolsonaro era esperado às 10h na sede da corporação para dar informações sobre o caso, mas, após ter seu celular apreendido e tomar conhecimento da prisão de seis suspeitos ligados a ele, incluindo seu antigo ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, decidiu se manifestar somente depois de sua defesa ter acesso aos autos. Até o final da tarde, estava pendente a definição de uma nova data para a oitiva. Em entrevistas à imprensa, Bolsonaro reafirmou ser inocente apesar de manifestação da PF sustentar que ele teria "plena ciência" dos crimes.
A polícia investiga um grupo suspeito de ter inserido dados falsos sobre vacinação contra a covid-19, dando status de imunizadas a pessoas que não tomaram as doses. O esquema teria beneficiado Bolsonaro, sua filha de 12 anos, o tenente-coronel Mauro Cid, além da esposa e de filhas do antigo ajudante de ordens. As inserções teriam ocorrido, segundo comunicado divulgado pela PF, entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, e "tiveram como consequência a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, a condição de imunizado contra a covid-19 dos beneficiários". O boletim oficial aponta ainda que "com isso, tais pessoas puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes impostas pelos poderes públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa".
Relatório da PF enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) sustenta que o certificado de vacinação supostamente falsificado foi emitido em nome de Bolsonaro em um computador localizado no Palácio do Planalto nos dias 22, 27 de dezembro do ano passado, e por meio de um celular no dia 30 de dezembro. O computador e o telefone seriam utilizados por Mauro Cid. A primeira emissão foi feita apenas um dia depois da inclusão fraudulenta das informações do ex-presidente no sistema informatizado. Uma quarta emissão ainda foi realizada no dia 30 de março deste ano.
A Polícia Federal também verificou que o então presidente não estava em Duque de Caxias (RJ) no dia em que, segundo o cartão de vacinação, teria sido imunizado.
A investigação também apura a posterior retirada desses dados do sistema de cadastro de vacinas. Uma das hipóteses é de que a remoção teria sido feita para o ex-presidente não ser flagrado em contradição, já que sempre negou ter se imunizado. Apurações preliminares indicam que a operação de apagamento dos registros teria sido feita pela prefeitura de Duque de Caxias, que tem uma gestão identificada com o bolsonarismo. Segundo a PF, a retirada teria ficado a cargo da chefe da Central de Vacinação do município fluminense, Cláudia Helena Acosta Rodrigues da Silva, no dia 27 de dezembro. Assim, pela análise das datas, duas emissões de certidão no nome de Bolsonaro teriam sido feitas mesmo depois da exclusão do banco de dados original. Cláudia foi ouvida nesta quarta-feira pelos policiais.
Uma das hipóteses em análise é de que as informações teriam sido colocadas de forma criminosa no sistema para serem validadas e usadas em viagens pelo Exterior, e posteriormente apagadas para ocultar rastros. A PF começou a desvendar o esquema após analisar mensagens no celular de Mauro Cid no âmbito da investigação das milícias digitais. No aparelho, havia um pedido para que registros falsos de imunização fossem inseridos no sistema da prefeitura de Duque de Caxias em favor dele e de sua esposa, Gabriela Cid. Os policiais descobriram que a adulteração acabou sendo feita por Cláudia Helena - posteriormente, descobriram que a mesma servidora teria alterado os dados de Bolsonaro. A intermediação entre os integrantes do governo federal e os servidores da prefeitura seria feita pelo ex-vereador Marcello Siciliano (também citado na investigação envolvendo o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco).
Para reunir novas evidências e avançar na apuração, agentes cumpriram 16 mandados de busca e apreensão, incluindo a casa da família Bolsonaro em Brasília, e seis mandados de prisão preventiva no Distrito Federal e no Rio de Janeiro como parte da chamada Operação Venire. A denominação é uma referência ao princípio do Direito "Venire contra factum proprium", que significa "vir contra seus próprios atos" e impede comportamentos contraditórios que causem surpresa à outra parte.
Ouvido no começo da tarde pelos policiais federais, Mauro Cid teria permanecido em silêncio. Além de Cid, foram detidos o policial militar Max Guilherme e o militar do Exército Sérgio Cordeiro (seguranças de Bolsonaro), o secretário de Governo de Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha, o sargento do Exército Luís Marcos dos Reis (ex-integrante da equipe de Mauro Cid) e Ailton Gonçalves Moraes Barros, candidato a deputado estadual pelo PL-RJ em 2022.
Fabio Wajngarten, que foi secretário especial de Comunicação Social durante na gestão anterior do governo federal e hoje assessora o ex-presidente, foi à sede da PF em Brasília para ter acesso aos autos da Operação Venire. Ele afirmou que o antigo chefe prestará esclarecimentos às autoridades em breve.
— O presidente Bolsonaro estará à disposição, como sempre esteve, das autoridades competentes tão logo a defesa tenha acesso aos autos. Os autos estão com o ministro Alexandre de Moraes, e o doutor Marcelo Bessa (advogado) já peticionou pedindo acesso — afirmou Wajngarten no começo da tarde.
Enquanto isso não ocorre, Bolsonaro deu entrevista ao programa Pânico, da JovemPan, em que confirmou não ter tomado vacina contra a covid-19 e não ter forjado o registro de imunização para viajar aos Estados Unidos dois dias antes do final de seu mandato:
— O tratamento dispensado a chefes de Estado é diferente do cidadão comum. Tudo é acertado antecipadamente. Nas minhas idas aos Estados Unidos, em nenhum momento foi exigido cartão vacinal. Então não existe fraude da minha parte — afirmou Bolsonaro.
O ex-presidente se mostrou emocionado, ficando com a voz embargada ao lembrar que os policiais pediram o cartão de vacina de Michelle, esposa dele, e da filha Laura. Disse sofrer "pressão enorme" desde antes de assumir a Presidência:
— Não sei quando isso vai acabar. Por que eu fico emocionado? Mexer comigo sem problema, quando vai para esposa, para filhos, aí o negócio é desumano, é desumano.
A operação foi deflagrada por determinação do ministro Moraes, responsável pelo inquérito que investiga milícias digitais.
Em decisão que autorizou buscas, Moraes cita indícios de "organização criminosa"
Na tarde de quarta-feira, o ministro do STF Alexandre de Moraes retirou o sigilo da decisão que autorizou a busca na residência do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ao permitir a operação, Moraes considerou "plausível" e "robusta" a linha de investigação que considera possível Bolsonaro ter inserido informações falsas sobre vacinas para obter vantagens. Além disso, o ministro mencionou a possibilidade de ter sido criada uma "organização criminosa" que altera dados de vacinação.
O cartão emitido no Palácio do Planalto, segundo relatório da PF enviado a Moraes, indica que o ex-presidente deveria ter recebido três doses da vacina contra a covid-19: uma Janssen e duas Pfizer - na data da primeira dose, em 13 de agosto do ano passado, o então presidente nem teria passado por Duque de Caxias, local da suposta aplicação. O documento sustenta ainda que, pelas provas obtidas até o momento, Bolsonaro teria "plena ciência" da inserção dos dados falsos de vacinação em seu nome e de sua filha. Um dos argumentos é a emissão das certidões de imunização no interior do Planalto no mês de dezembro, quando ainda trabalhava no palácio como presidente.
O texto assinado pelo ministro diz: "Diante do exposto e do notório posicionamento público de Jair Messias Bolsonaro contra a vacinação, objeto da CPI da Pandemia e de investigações nesta Suprema Corte, é plausível, lógica e robusta a linha investigativa sobre a possibilidade de o ex-presidente da República, de maneira velada e mediante inserção de dados falsos nos sistemas do SUS, buscar para si e para terceiros eventuais vantagens advindas da efetiva imunização, especialmente considerado o fato de não ter conseguido a reeleição nas Eleições Gerais de 2022".
Conforme afirmou Moraes, os indícios de delito são "significativos", e a suposta associação criminosa não somente teria buscado obter vantagens pessoais, mas também desacreditar o sistema de imunização do país. O despacho observa que "são absolutamente relevantes os indícios da ocorrência efetiva dos crimes, especialmente no contexto agora noticiado de inserção de dados falsos em sistema de informações, o que indicaria, nos termos dos indícios já colhidos, a efetiva existência de uma organização criminosa articulada, com divisão de tarefas e de múltiplos objetivos, tanto no âmbito particular dos investigados, como em aspectos relacionados ao interesse público, em detrimento da credibilidade interna e externa do exemplar controle de vacinação nacional em pleno período pandêmico", continuou o ministro.
Quem são os seis presos nesta quarta-feira
- Tenente-coronel Mauro Cid Barbosa, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro
- Policial militar Max Guilherme, segurança de Bolsonaro
- Militar do Exército Sérgio Cordeiro, segurança de Bolsonaro
- Secretário de Governo de Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha
- Sargento do Exército Luís Marcos dos Reis, ex-integrante da equipe de Mauro Cid
- Ailton Gonçalves Moraes Barros, candidato a deputado estadual pelo PL-RJ em 2022
Quem são os 16 alvos das operações de busca e apreensão
- Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente da República
- Mauro Cesar Barbosa Cid, tenente-coronel, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro
- Gabriela Santiago Ribeiro Cid, esposa de Mauro Cid
- Gutemberg Reis de Oliveira, deputado federal pelo MDB-RJ
- Luís Marcos dos Reis, sargento do Exército, ex-integrante da equipe de Mauro Cid
- Farley Vinicius Alcântara, médico que teria envolvimento no esquema
- João Carlos de Sousa Brecha, secretário de Governo de Duque de Caxias (RJ)
- Max Guilherme Machado de Moura, segurança de Bolsonaro
- Sergio Rocha Cordeiro, segurança de Bolsonaro
- Marcelo Costa Câmara, assessor especial de Bolsonaro
- Eduardo Crespo Alves, militar
- Marcello Moraes Siciliano, ex-vereador do RJ
- Ailton Gonçalves Moraes Barros, candidato a deputado estadual pelo PL-RJ em 2022
- Camila Paulino Alves Soares, enfermeira da prefeitura de Duque de Caxias
- Claudia Helena Acosta Rodrigues da Silva, servidora de Duque de Caxias
- Marcelo Fernandes de Holanda