De onde viemos? Como chegamos a isto? O que foi esta campanha? GaúchaZH aponta a seguir os 10 fatos fundamentais da disputa presidencial de 2018, os episódios e as situações que marcaram o período eleitoral, deram forma ao desempenho das candidaturas e devem definir, neste domingo, o resultado das urnas.
1) A facada
Pode um maluco, munido de uma faca de cozinha, determinar quem vai ser o presidente do Brasil? Jair Bolsonaro (PSL) tinha 22% das intenções de voto quando foi esfaqueado, em 6 de setembro, durante ato de campanha em Juiz de Fora (MG). Três dias depois, estava com 26%. Mais três, e chegava a 28%. Dali por diante, seria lomba acima.
Esse efeito foi imediatamente previsto pelos analistas: a condição de vítima comoveria parte do eleitorado. O que não se previu foi o quanto a facada revolucionaria a campanha. O que a princípio parecia um ferimento superficial revelou-se grave, levando a duas cirurgias e a três semanas de internação. O Brasil passou a conviver com um candidato que fazia sua propaganda a partir da cama do hospital. Parecia uma desvantagem, mas não era. Bolsonaro dominou o noticiário e foi poupado de desgastar-se em debates. Vexados de bater em alguém com a vida em risco, os adversários baixaram o tom. Enquanto isso, os bolsonaristas vendiam a falsa ideia de que a facada viera do PT.
O autor, Adelio Bispo, 40 anos, diagnosticado com problemas mentais, anunciou ao ser preso que desferira a facada a mando de Deus. Flávio Bolsonaro, filho do candidato, apresentou versão oposta: “Deus agiu e desviou a faca”.
2) Lula candidato
Já imaginou um condenado à prisão candidatar-se, ser eleito e governar o Brasil a partir de sua cela? Os petistas imaginaram – ou pelo menos fizeram de conta. Em agosto, quando estava cumprindo pena havia quatro meses, o ex-presidente Lula foi escolhido por aclamação para ser o candidato do PT. Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo pelo partido, seria o vice.
Seja dita a verdade, o eleitor embarcou nessa. Lá pelo fim do mês de agosto, Lula batia em 40% nas pesquisas, o dobro de Bolsonaro (PSL). A decisão do PT, no entanto, conferiu um ar de realismo mágico à campanha. Havia um candidato que todo mundo sabia que não era candidato. Havia um indivíduo fazendo de conta que era o vice, mas que todo mundo sabia que seria o cabeça de chapa.
E havia pesquisas eleitorais que, por causa disso, todo mundo sabia que não queriam dizer nada. A fé no Lula presidente ainda ganhou fôlego inesperado quando o comitê de Direitos Humanos da ONU afirmou e reafirmou, em agosto e no início de setembro, que o Estado brasileiro deveria garantir a candidatura. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não quis saber. Barrou a participação do ex-presidente.
Para os petistas, “eleição sem Lula é fraude” – mas não depois do dia 11 de setembro, quando passaram a promover Haddad, o substituto ungido pelo chefe na última hora.
3) #EleNão x #EleSim
Um dos desdobramentos da campanha foi um movimento de mulheres de dimensões inéditas. Nasceu na internet, com a hashtag #EleNão, e foi parar nas ruas, nas maiores manifestações de massa do período eleitoral. Multi e suprapartidário, o movimento pregava ideia simples: não importava a preferência política, todas deveriam se unir contra Bolsonaro, visto como ameaça aos direitos femininos. Poderia ser qualquer um. Mas ele, não.
A hashtag começou a se propagar em um momento de estagnação do candidato nas pesquisas e em que Haddad subia. Desembocou, no dia 29, em atos que reuniram multidões em dezenas de cidades do Brasil e também em metrópoles mundo afora. Havia um clima de euforia entre os rivais de Bolsonaro: as mulheres salvariam o país. O sentimento era de que, na segunda-feira, a nova pesquisa do Ibope apontaria uma virada no jogo.
Sobreveio o banho de água fria. Em vez de cair, Bolsonaro subiu quatro pontos. Cresceu principalmente no eleitorado feminino, que dizia: “Ele, sim”. A perplexidade foi geral. O que acontecera? Qual a razão do efeito reverso? Ainda não há explicação. Uma hipótese: as mulheres saíram à rua para alertar que Bolsonaro é diferente de todos os outros – justamente a razão do voto de seus apoiadores.
4) Fim da polarização
O Brasil tem trocentos partidos, mas na hora da escolha do presidente entrava em funcionamento uma engrenagem azeitada: a disputa ficava entre PT e PSDB. Vinha sendo assim quase desde o albor da redemocratização: Fernando Henrique x Lula (1994 e 1998), Lula x José Serra (2002), Lula x Alckmin (2006), Dilma Rousseff x José Serra (2010), Dilma x Aécio Neves (2014).
Em 2018, depois de 24 anos, a engrenagem pifou. O Brasil continuou dividido entre petistas e antipetistas, mas o antipetismo mudou de face: debandou do PSDB. O candidato tucano, Geraldo Alckmin, passou a campanha toda abaixo de 10% das intenções de voto, na quarta posição.
Por que, se apenas quatro anos antes Aécio era a esperança de ética política de metade do eleitorado, que via o PT como antro de corrupção? Bem, a resposta passa também pelo próprio Aécio. Ainda enquanto presidente do PSDB, ele foi flagrado acertando propina de R$ 2 milhões.
O envolvimento do tucanato em roubalheiras gerou, nos antipetistas, a ideia de que todo mundo é igual, todo mundo é corrupto. O problema já não era só o PT, eram os partidos, o sistema político. E a única saída seria alguém que parecesse vir de fora, que desprezasse os partidos, o sistema e, talvez, a própria democracia.
5) Fake news
Mentira sempre houve, é verdade, mas fake news são fenômeno diferente. Na internet, jorra a mentira disfarçada de notícia, para manipular opiniões. É o princípio do lobo em pele de cordeiro: usurpa-se a credibilidade do jornalismo para fins nefastos.
Já se anunciava que, assim como na eleição americana que levou Donald Trump à presidência, a campanha no Brasil seria assolada por esse mal. Tristemente, confirmou-se. Nos últimos dias, monitoramentos das redes revelaram que o fenômeno havia explodido, com manipulações descabeladas a correr via Facebook e WhatsApp. Segundo observatórios de mídias digitais, os mais ativos nesse campo eram os apoiadores de Bolsonaro.
Trata-se de fenômeno trágico, que leva às urnas milhões de eleitores descolados da realidade, a justificar seu voto com base em mentiras absurdas. É a ficção e a falsidade decidindo o futuro do país.
Em meio a treva, veículos de comunicação tradicionais lançaram iniciativas para verificar e denunciar as fake news, o chamado fact checking. Como os manipuladores reagiram? Vestiram mais uma vez a pele do cordeiro. Criaram o fake fact checking.
6) De última hora
Depois de esticar a ficção de sua candidatura até o último minuto, em 11 de setembro Lula arriscou o milagre da transubstanciação de candidatos. Ungiu Haddad para seu lugar e proclamou o dogma: Lula é Haddad, Haddad é Lula. A manobra, que consistia em acumular intenções de votos e depois transfundi-los a outrem, era arriscada. Apresentado como candidato no lugar do chefe, Haddad aparecia em quinto ou sexto lugar nas pesquisas, na faixa dos 4%. Faltando menos de um mês para o pleito, era um desconhecido. No Nordeste, maior bolsão do lulismo, referiam-se a ele como Adraike, Adauto, Andrade, Alade, Radarde.
Ainda assim, a transubstanciação funcionou, ao menos no início. Oficializado candidato, Haddad surfou numa enxurrada de votos. Em 10 dias, subiu para 22%, a apenas seis pontos de Bolsonaro. No segundo turno, surrava o adversário: 45% x 39%. O anônimo surgido quase do nada despontava como virtual futuro presidente do Brasil.
Essa impressão sofreu abalo no fim da campanha. Depois da disparada, o ex-prefeito estagnou e, ao se tornar mais conhecido, herdou a rejeição do antipetismo. Deixou até de ganhar no segundo turno, conforme as projeções. Chega ao dia de votação com o desafio de mostrar que nesse poste há luz.
7) Da rua para as redes
O brasileiro que tinha oportunidade de visitar outro país em dia de eleição voltava espantado: a julgar pelo que via nas ruas estrangeiras, não dava para suspeitar que uma votação estivesse em andamento. Em 2018, o Brasil virou esse tipo de país. Em contraste com o passado recente, quase não se veem bandeiras nas janelas, cabos eleitorais nas esquinas e adesivos nos carros.
Não é que estejamos contidos. É que a mobilização migrou das ruas para as redes. Foi nas praças virtuais de Facebook e WhatsApp que ocorreram o corpo a corpo, o bandeiraço e a boca de urna. Sob aparência de placidez, ferveu o turbilhão.
Memes, boatos e vídeos na internet tornaram supérfluo até o que era o principal canal para balançar o eleitor: o horário eleitoral. Em quatro das sete eleições, venceu quem teve mais tempo e, de 1998 para cá, sempre foram ao 2º turno os dois candidatos mais bem aquinhoados.
Essa época acabou. Acreditava-se que o campeão de tempo, Alckmin, com 5min32s, decolaria, mas não saiu do lugar. Quem despontou foi Bolsonaro, com apenas 8s – 40 vezes menos.
8) Fracasso do centro
No dia 1º de janeiro de 2019, deverá tomar posse como presidente um senhor odiado por grande parte da população. Seja Bolsonaro ou Haddad, não será apenas uma criatura em quem quase metade das pessoas não votou, mas em quem jamais votaria.
O próximo governante será detestado, em certa medida, porque o centro fracassou em oferecer alternativa forte, viável e empolgante. É claro que a classificação “centro” é altamente discutível. Ciro Gomes (PDT) está à esquerda, Alckmin está à direita e Marina Silva (Rede) – que já disse não ser de direita, de esquerda, ou de centro, mas estar à frente – ficou como sempre para trás.
O certo é que os três tentaram colocar-se como opção moderada à polarização. A princípio, Ciro parecia bem posicionado para o papel, mas fracassou nas negociações com o autodenominado centrão (DEM, PP, PR, PRB e SD), que optou por Alckmin. O tucano, apesar da megacoligação, confirmou a fama de picolé de chuchu. E Marina repetiu a dose: foi a candidata que, quanto mais campanha faz, menos voto tem. Na reta final, quando já não havia mais tempo, ainda surgiu mobilização para unir os três ao redor do nome de Ciro, numa chapa “Alcirina”. Novo fracasso.
9) Campanha da penúria
Esta é a primeira eleição para presidente após o fim do financiamento empresarial – e nota-se. Candidatos não conseguiram nem chegar ao teto estabelecido, de R$ 70 milhões. A campanha mais cara, do PT, foi projetada em R$ 50 milhões. Alckmin estimou a sua em R$ 43 milhões. Quatro anos atrás, Dilma gastou R$ 445 milhões, e Aécio, R$ 289 milhões, em valores corrigidos pela inflação.
As campanhas ganharam jeitão mambembe. Sumiram as megaproduções e os marqueteiros a peso de ouro. O novo quadro de penúria foi propício ainda à emergência da figura do candidato multimilionário, com cacife para colocar dinheiro do próprio bolso.
João Amôedo (Novo), patrimônio declarado de R$ 425 milhões, informou que bancaria com recursos pessoais até 20% dos gastos, calculados em R$ 7 milhões – até sexta-feira, porém, havia aplicado módicos R$ 100 mil. Henrique Meirelles (MDB), dono de R$ 377 milhões, foi mais esbanjador: botou R$ 45 milhões na própria campanha. Levando em conta as últimas pesquisas, que lhe davam 2% do eleitorado, estava gastando R$ 17 por voto.
10) Disputa sem situação
Desde a redemocratização, as campanhas para a Presidência tiveram no centro do debate o mandato que chegava ao fim. Havia um candidato da situação e os que tentavam se credenciar atacando o governo. Ser da situação, em geral, era o melhor negócio. Em sete eleições, cinco foram vencidas pelo candidato oficial.
Em 2018, a escrita mudou. Nenhum postulante arriscou colocar-se como herdeiro de Michel Temer, por motivos óbvios: é o presidente mais impopular da história. E olha que, analisando bem, está quase todo mundo implicado na atual administração. O PSL, de Bolsonaro, foi o mais fiel ao governo no Congresso, votando a favor dos interesses do Planalto com mais frequência até mesmo do que o MDB, partido do presidente. Alckmin, por sua vez, tem na coligação oito partidos de um total de nove que participam ou participaram da gestão atual, assumindo ministérios. Também Marina e Alvaro Dias (Podemos) ligaram-se a legendas que aceitaram cargos do governante apelidado de “vampirão”.
O caso mais surpreendente é o de Meirelles. Além de ser do MDB, o partido da situação, foi ministro da Fazenda e só deixou o cargo seis meses atrás. Mesmo assim, não apenas negou ser candidato de Temer ao longo da campanha, como ainda procurou ligar seu nome ao de Lula.