2020 é o ano da pandemia do coronavírus, que deixou um rastro de morte, crise sanitária e econômica. O primeiro caso confirmado em Caxias do Sul foi importado da Itália. Um homem de 42 anos pisou na cidade no dia 29 de fevereiro, vindo de Milão, com sintomas da covid. Após o exame positivo, o caso veio a público, informado pela Secretaria Municipal da Saúde (SMS), no dia 11 de março, uma quarta-feira, às 19h30min.
Como um tedioso e indigesto filme, 2020 avançou arrastando incertezas, informações nem sempre coerentes com a realidade, um tanto de pavor e doses de superação. Nove meses depois, o sentimento geral é de que as pessoas se cansaram das regras de distanciamento e tentam burlar os decretos, principalmente no que diz respeito à proibição de festas e aglomerações. Esse fenômeno é classificado por psicólogos como “fadiga da pandemia”.
Caxias do Sul, 23 de dezembro de 2020. O comércio aposta todas as suas fichas nas vendas de final de ano, para quem sabe aplacar um pouco das curvas negativas nas estatísticas econômicas. O movimento, nos últimos dias antes do Natal, tem sido intenso pelas ruas e shoppings da cidade. Enquanto isso, nos hospitais, o cenário é de um elevado número de pessoas com necessidade de internação. Está visível para quem quiser ver, no site Painel Covid da SMS. Desde 11 de março, 18.594 pessoas foram contaminadas em Caxias do Sul. Destas, 274 não resistiram às complicações do vírus.
No contrapeso, é importante registrar que 16.935 caxienses já estão recuperados. No entanto, 1.385 devem atravessar as festas de Natal e Ano-Novo com coronavírus. Nem todos os internados em Unidades de Terapia Intensiva, sejam em hospitais públicos ou privados, estão com covid-19. O fato é que, das 251 pessoas em UTIs, 61 tem coronavírus e 14 ainda esperavam por confirmação até a noite de 22 de dezembro. Esse é o contingente que está lutando com bravura, entre a vida e a morte, para alcançar o novo ano.
Na linha de frente dos hospitais há um exército, que tem se dedicado a estudar o inimigo, combatendo o vírus com os mais variados protocolos, examinando estudos científicos e procurando estabelecer pontes entre internados e familiares. A enfermeira Sabrina Rech, 29 anos, estava no plantão da UTI do Complexo Hospitalar Unimed, quando chegou o primeiro caso confirmado em Caxias.
– A equipe ficou muda, todo mundo se olhava e, mesmo sem dizer nada, era um olhar de surpresa, medo e insegurança. Passamos o nosso plantão à próxima equipe, que precisou intubá-lo – recorda Sabrina.
A enfermeira desabafa, durante a entrevista por telefone, dizendo estar preocupada. Revela que é preciso equilíbrio para realizar bem as suas tarefas, acolher os pacientes e seus familiares, gerando o melhor bem-estar possível, e ainda esforçando-se para manter a mente sã. Porque o cenário exige um tipo de tratamento intensivo aos pacientes, mas o trabalho também tem se intensificado em carga e emoção dentro dos plantões.
– Sempre penso que o paciente é o amor de alguém. Ele pode ser um pai ou avô ou, ainda, uma mãe ou avó. O mínimo que precisamos é tratá-los com carinho, educação e respeito. Isso tudo tem mexido muito com todo mundo – revela Sabrina.
Vida que pulsa na UTI
Esse “todo mundo” a que se refere a enfermeira, ela explica, contempla desde pacientes e seus familiares até as equipe médicas e também seus familiares. Afinal de contas, não há mundos paralelos. Uma sociedade é interligada, apesar dos diferentes papéis dos seus atores sociais. Dia desses, ela precisou lidar com uma situação tensa e delicada. Um senhor de 62 anos, que estava internado em estado estável, precisou ser encaminhado para a UTI às pressas, para ser intubado. O filho, de 20 anos, ficou desesperado e não pôde sequer olhar fundo nos olhos do pai para dizer que o amava.
Enquanto uma parte da equipe estava conduzindo o senhor à UTI, Sabrina aproximou-se do jovem e perguntou a ele:
– Se eu te der um papel e uma caneta, tu escreve uma mensagem pro teu pai?
Ainda desnorteado, o jovem escreveu rapidamente o bilhete. Sabrina recorda ainda do texto:
– Estava escrito: “Assim como eu te trouxe até a UTI vou te buscar pra comemorar o teu aniversário”.
Antes de ser intubado, o senhor leu o recado, encharcando-o em lágrimas de amor, emocionando não apenas a ele, mas a toda a equipe. Dias depois de ter sido intubado, recuperou-se, foi para o quarto e é mais um paciente que a equipe devolveu à família.
– Estamos fazendo a nossa parte... – diz Sabrina, em reticências, como uma pausa de mil compassos.
União de esforços no combate à covid
Como se vê, o trabalho das equipes médicas tem exigido mais esforço ainda por conta da complexidade do coronavírus. Em alguns casos, os pacientes permanecem de 30 a 40 dias dentro de uma UTI até a plena recuperação. Isso tudo acaba gerando uma dedicação maior por parte dos profissionais da saúde. A entrevista com o coordenador de Fisioterapia da Unimed, Paulo Finimundi, 44, estava marcada para as 19h, no final do seu turno. Mas ele só conseguiu atender a reportagem, por telefone, às 21h. De dentro do carro, ainda no estacionamento do hospital, Finimundi revelou:
– Estamos no limite da capacidade de atendimento. As equipes estão dando todo o gás. Mas, se passar desse limite não sei se a gente aguenta. Estamos desde março treinando as equipes e mantendo as pessoas motivadas porque a exigência e o desgaste são muito intensos. Nós pensávamos que em dezembro seria bem mais tranquilo, mas estamos a ponto de chegar na situação que vimos na Itália, de precisarmos escolher quem vai ter respirador ou não.
Até a noite de ontem, 95,56% dos leitos de UTI da Unimed estavam ocupados por pessoas com covid e outras enfermidades. Esse alto nível de complexidade no atendimento fez com que um dos princípios básicos de estruturação de uma equipe fosse quebrado parcialmente. Porque, em tese, toda a estrutura organizacional precisa de uma hierarquia. Em alguns casos ela é mais flexível ou rígida. Na UTI da Unimed, no entanto, revela Finimundi, a união de esforços tem sido a arma secreta no combate ao inimigo coronavírus.
– Uma das lições dessa pandemia, que é totalmente diferente da H1N1, é que tivemos que quebrar a hierarquia entre as especialidades médicas. Tivemos de nos unir ainda mais para darmos conta de todo esse volume de trabalho. Cada um compartilha o que tem de melhor para que tenhamos sucesso com cada paciente. A lição que fica é a da humildade – afirma.
Pensamentos que fantasiam a realidade
O cenário apresentado por estes profissionais da saúde, que trabalham na linha de frente do combate à covid, é a dura realidade. A mesma realidade, no entanto, pode ser observada por um outro viés. A fotografia postada a seguir, foi clicada nos primeiros dias da vigência do decreto municipal que impôs restrições a toda cadeia produtiva. No dia 23 de março, quando o Pioneiro publicou a imagem, Caxias tinha um caso confirmado e dezenas à espera do resultado do teste para covid.
Já a fotografia que está no topo desta reportagem, foi feita sábado, dia 19 de dezembro, no último final de semana antes do Natal. Até aquele dia, o registro de contaminados havia ultrapassado a marca de 18 mil infectados, com 263 mortes.
– Em geral, as pessoas tem tido um entendimento de que a pandemia está muito longa. Começamos cedo com as medidas de restrição e, naquele momento, as pessoas compreenderam a importância. Então, chegou um tempo em que as pessoas tiveram o que nós, na psicologia, chamamos de “pensamentos mágicos”. Diziam algo do tipo “eu não peguei, então não pego mais”, ou ainda “isso não vai dar em nada” – exemplifica a psicóloga Maria Elisa Fontana Carpena.
A psicóloga explica ainda que esse tipo de pensamento, que parece não medir consequências, pois fantasia a realidade, é bem comum durante a adolescência.
Em parte, isso justificaria a insistência na realização de festas clandestinas, que têm sido alvo das inúmeras ações de fiscalização das prefeituras da Serra gaúcha. No entanto, Maria Elisa diz que os “pensamentos mágicos” têm se tornado presentes com uma maior incidência ainda no grupo que ela chama de jovens adultos, na faixa dos 30 a 40 anos. Coincidência ou não, a população mais infectada por covid está justamente na faixa dos 30 a 39, seguido das pessoas entre os 19 e 29 anos. Os dados são do Painel Covid, da SMS.
Maria Elisa pede que as pessoas tenham consciência nessa época de confraternizações. Há um anseio coletivo por abraços, afagos e ternura. No entanto, quem pretende fazer valer do seu direito de ir e vir e da liberdade de convívio, argumenta a psicóloga, precisa lembrar de sustentar suas ações de forma responsável.
– Qualquer liberdade tem consequências e devem estar baseadas em responsabilidades. A ideia de que eu sou livre e faço o que eu quiser ok, cada um sabe de si, mas tem consequências que as pessoas devem assumir. Muitos não estão entendendo que o “novo normal” veio para ficar. A ideia de que tudo vai voltar a ser como era antes, assim como a ideia que se renova anualmente, de que no dia 1º janeiro de 2021 será tudo diferente, é uma fantasia. E, neste ano, o mecanismo de negação está ainda mais presente – argumenta.
Deserto afetivo na adolescência
O médico psiquiatra Caetano Oliveira diz que ele e seus colegas estão com as agendas sobrecarregadas. É preciso avançar noite adentro e, também, nos finais de semana, para dar conta das demandas, sobretudo para aplacar os conflitos entre pais e adolescentes. Da mesma forma que ele precisa ouvir os dois lados, depurando as inquietudes, como se fosse um repórter em uma investigação jornalística, Caetano revela que “diplomaticamente prefere ficar no centro dos conflitos entre as gerações”.
O psiquiatra reconhece que festas clandestinas, em que não se respeita distanciamento social, muito menos o uso da máscara e do álcool gel, são perigosas, principalmente neste contexto de um número crescente de casos de covid. No entanto, conduz o repórter a refletir acerca de um mal que tem sido implacável com os adolescentes e se intensificado na pandemia. O diagnóstico recorrente tem sido a depressão e crises de ansiedade que, infelizmente, tem provocado um aumento significativo das tentativas de suicídio entre os adolescentes.
– Os jovens, principalmente, precisam de contato humano. No entanto, o convívio tem ficado mais superficial, com uso excessivo da internet, e tem sido uma briga trazer o jovem para a mesa de jantar. Esse comportamento vai cobrar um preço emocional muito caro – afirma.
Pergunto ao Caetano como fazer para trazer os adolescentes para a vida como ela é, distanciando-os da realidade virtual, mas sem perder de vista o cuidado com as medidas de prevenção à covid. Primeiro, ele defende que os pais têm de exercer sua autoridade no lar, limitando o uso da internet. Segundo, caso não haja idoso ou membro da família em grupo de risco morando em casa, pode-se pensar em uma forma de flexibilizar o convívio do adolescente com um grupo pequeno e restrito de amigos.
– Penso que seria muito saudável que dois ou três amigos do colégio pudessem se encontrar durante a semana, nem que seja só para bater um papo, com todos os cuidados possíveis e regras estabelecidas pelos pais. Porque, se não quisermos ter uma “pandemia” também de problemas mentais além da covid, teremos de pensar em válvulas de escape para esses adolescentes que estão vivendo em um “deserto afetivo” – defende Caetano.