Sabe aquela pergunta trivial: “Bom dia, tudo bem?”, quase sempre respondida de maneira fria e mecânica: “Sim, tá tudo bem”. E muitas vezes nada vai bem, mas a alternativa é fingir, porque dá trabalho explicar que nada vai bem. Mas o olhar, ah... o olhar nunca mente, é revelador. Nesta primeira reportagem da série Um olhar sobre a vida, conheça as histórias de superação de um dos males deste século: a depressão, o grande vetor do suicídio.
Um ou dois dias tristes podem soar como uma doce melancolia, que reverbera no tom da bossa nova. Mas dias arrastados de tédio, meses que parecem décadas e anos que parecem séculos mostram que a tristeza conquistou o quilate de uma depressão. A depressão não reconhecida, desprezada e não tratada, esconde o clamor silencioso da agonia que se torna a vida, e assim pode desencadear por meio do suicídio.
Segundo pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS), com dados de 2016, cerca de 800 mil pessoas acabaram com suas vidas, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos. No Brasil, no mesmo ano, a OMS contabilizou 6,1 suicídios a cada 100 mil habitantes.
– Está cada vez mais evidente que a maior causa do suicídio são os transtornos mentais. As estatísticas mostram que mais de 97% das pessoas que tentam se matar sofrem desses transtornos. Entre eles, a depressão e a dependência de álcool e drogas são os diagnósticos mais frequentes. O suicídio, especialmente a partir dos dados científicos recentes, nos levam a crer que o assunto é caso de saúde pública – defende o psiquiatra e psicoterapeuta José Paulo Fiks, que é também Pós-Doutor pela Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador em Violência no Departamento de Psiquiatria da Unifesp.
Dados sobre suicídio em Caxias do Sul, no primeiro semestre de 2019*
—284 são as tentativas registradas de suicídio em Caxias do Sul.
— O número corresponde a 74% do total notificado no ano passado, 382
— 67% delas são de mulheres
— Em 2018, houve 37 mortes por suicídio.
* Conforme dados da Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal da Saúde (SMS)
"Eu amo a vida, não quero morrer"
Marisa sempre foi uma mulher divertida. Mas num dia desses, estranhos como aqueles de céu escuro e tempestuoso, o que era claro virou nebuloso, o que era virtude transformou-se em tormenta. Como uma máscara, a alegria desprendeu-se da face, revelando uma tristeza intermitente. Com a face da tristeza veio uma dor da alma e uma agonia que asfixia e paralisa. Marisa não é personagem de nenhum romance da escritora Clarice Lispector (1920-1977). Marisa Pereira, 50 anos, é jornalista, e além de disputar maratonas, luta diariamente contra a depressão.
– Eu gosto de estar sempre sorrindo, mas, de repente, me peguei em um momento em que eu só queria chorar. Me vi sozinha no mundo, meu pai já tinha falecido, minha mãe estava doente e eu tinha recém me separado. Aí eu pensava: “Tá, e se eu sumir, quem vai sentir minha falta?”.
A jornada através dos labirintos de uma alma atormentada pode levar ao limite de pensar realmente em pôr fim ao sofrimento através do suicídio. Marisa já pensou na morte como alívio. Mas, antes de cometer a loucura, resolveu ligar para um amigo.
– Dizem que as pessoas que provocam o suicídio não têm amor à vida. Não é verdade. Eu amo a vida, não quero morrer.
Cansada da tristeza que teimava em tirar sua tranquilidade, Marisa procurou apoio psicológico. Ela precisava encontrar alguém que a ouvisse e ajudasse a aplacar a dor. Na sequência, veio o acompanhamento de um psiquiatra e o uso de medicamentos, que enfim trouxeram calmaria à sua vida. Além desse suporte médico, Marisa passou a dedicar mais tempo para a corrida, um hobby antigo.
Uma das provas que disputou por quatro vezes é a Travessia Torres-Tramandaí, com 82km. Esse grande desafio, fisicamente extenuante, é uma analogia de como Marisa tem procurado encarar a vida.
– É um desafio enorme, tanto físico, quanto mental. Se eu conseguir ter o foco de um quilômetro por vez na corrida, eu também aplico essa ideia no meu dia a dia.
Marisa diz que está em uma fase tranquila, em paz consigo. Até encarou um final de semana sozinha, embalada por séries e baldes de pipoca e ficou numa boa. Ela acredita que o seu relato pode ajudar outras pessoas a se darem conta de que é preciso encarar a depressão de frente.
– Eu acho que as pessoas têm de falar sobre o assunto. As coisas só começaram a mudar quando pedi ajuda – desafia.
"Eu só quero limpar o container"
Tere Finger, 58 anos, pinta com virulência. A dureza do traço e a pincelada veloz são como um grito de vida, apesar do olhar de seus retratos tender para a morte. São dela as obras que ilustram essa reportagem. É a expressão em tintas de uma dor interna, por vezes de angústia, que transfigura a imagem, como aqueles que não se reconhecem diante do espelho. Viver é tão urgente, mas como ter fôlego se o poço que guarda água, símbolo da vida, estiver entulhado?
– Eu só quero limpar o container, eu pinto para desafogar e, quando não pinto, eu escrevo – revela Tere, formada em Desenho pela UCS.
Em seu estúdio, localizado em Flores da Cunha, Tere não sabe mais onde colocar tantas pinturas. Não faz ideia de quantas obras já fez e fica surpresa com telas que nem lembrava ter criado e que estavam debaixo de uma pilha contendo cerca de 400 ilustrações.
– Eu gosto de pintar pessoas. Sinto que muitas estão sofrendo. Por isso que eu pinto dessa forma, só para ver se as pessoas se tocam de olhar o outro. Às vezes, eu até choro quando termino uma obra. Esse trabalho é uma terapia para mim. Porque eu não quero ficar como aquelas pessoas que tomam remédio até os 80 anos, né?! – desabafa.
Tere revela que há diversos casos de parentes seus que enfrentaram e, ainda enfrentam, problemas com a depressão. Alguns desses tiveram o triste fim do suicídio, como uma alternativa à falta de esperança. Talvez seja por isso, que além do olhar de urgência, Tere espalhe por suas obras tantos elementos da religiosidade, como símbolo de fé, que é uma espécie de escudo contra aflições e angústias.
– Minha mãe rezava o tempo todo – diz Tere, que tem 15 irmãos (uma das meninas morreu ainda pequena).
Tere não gosta de falar de suas referências, porque entende que começou a pintar há oito anos como uma catarse, apesar de suas obras terem um quê do pintor gaúcho Iberê Camargo (1914-1994). Mas talvez a melhor forma de traduzir essa virulência de menina esteja exposta em um texto do pintor belga Michel Seuphor: “Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência”.
– A gente faz nossas escolhas antes de ficar mal. Eu faço as minhas e pinto. Acho que se cada um se dedicasse a fazer o que gosta, não precisa ser arte, já seria um bom caminho – ensina.
ONDE PROCURAR AJUDA:
O CVV _ Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo. Atende por telefone, no 188, por e-mail e chat 24 horas, no site www.cvv.org.br.
Em Caxias do Sul, as Unidades Básicas de Saúde (UBSs), os serviços de saúde mental, a Unidade de Pronto Atendimento 24 Horas e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) estão preparados para auxiliar as pessoas em sofrimento psíquico.
Suicídio e Manejo do Comportamento Suicida
Caxias recebe dia 19 de outubro a um curso com Karina Okajima Fukumitsu, que vem ao Brasil, em parceria com o Recriar, para discutir sobre o suicídio e oferecer instrumentalização na lida e manejo do comportamento suicida.
Agende-se
O quê: Suicídio e Manejo do Comportamento Suicida
Quando: 19 de outubro de 2019
Onde: Auditório do Bloco J (sala 420), da Cidade Universitária da UCS (Rua Francisco Getúlio Vargas, 1.130 - Caxias)
Quanto: Inscrições realizadas até o dia 30 de setembro: R$ 390. Inscrições de 1º até o dia 19 de outubro: R$ 410. Alunos e professores do Recriar, alunos (devidamente matriculados no semestre) e professores da UCS, e sócios da ABMP-RS: R$ 350.
Módulos que serão estudados
A compreensão do fenômeno suicídio;
A compreensão do comportamento suicida;
Avaliação compreensiva do potencial de suicídio: Fatores de risco e sinais de alerta;
Implicações, possibilidades e manejo do comportamento suicida.
Fatores de proteção;
Introdução à posvenção: Atendimento ao luto por suicídio.
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