Há 21 anos, Ana Reis estuda a mente e as emoções para ensinar as pessoas a lidarem com a morte. No currículo, acumula graduação em psicologia, especialização em teoria, pesquisa e intervenção em luto e doutorado em teologia. Nesta entrevista, que encerra a série Um olhar sobre a vida e que teve como mote o Setembro Amarelo, Ana revela a urgência no cuidado com o outro. As reportagens mostraram que há uma multidão que sofre em silêncio, sem saber como enfrentar a depressão, que se não tratada pode resultar em suicídio.
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Ana tem se preparado para enfrentar situações de estresse e desespero de gente que não vê saída para o luto. Em 1998, iniciou um projeto piloto em uma funerária de Caxias do Sul, oferecendo apoio para os familiares de quem morria. Em pouco tempo, o serviço foi estendido aos funcionários da empresa. Vinte e um anos depois, ela mesma pôde colher o fruto da árvore que semeou com lágrimas e doação e, por que não dizer também, amor. Na sexta-feira passada, Ana perdeu a irmã.
Ana entrou na funerária, sentindo aquela dor que muitas vezes acolheu enquanto prestava serviço de cuidadora da alma arrasada. Aproximou-se dela Marciano, o gerente da funerária, que lá atrás Ana cuidou, treinou e ensinou a atender os enlutados com afeto e empatia.
– Eu disse para ele: “Preciso de um SOS, porque a minha irmã faleceu e eu queria que vocês me ajudassem”. Ele me disse para esperar um pouquinho. Eu achei que ele estava indo atender ao telefone. O Marciano então volta com boa parte da equipe e eles me abraçam: “Tu confia na gente?”, perguntaram. Eu respondi que sim – relata Ana, emocionada.
Apesar da morte, Ana tem semeado vida por onde quer que ande. E a lei da semeadura é implacável. A colheita é sempre proporcional ao que se planta.
– Foi muito importante me sentir cuidada por quem eu cuidei. Durante o ritual fúnebre, quando eu menos esperava desceu o pessoal do Cenáculo de Maria e o grupo dos pais enlutados (Anjos Secretos). Eles vieram nos abraçar. São nesses momentos que a gente percebe a beleza desse circuito de cuidados.
Leia a seguir, a entrevista com Ana Reis, que revela a fortaleza que há na humildade de nos reconhecermos humanos e falhos, e não super-homens que a tudo suportam, como máquinas frias e insensíveis.
Pioneiro: Quando e como começou a tua jornada para extrair vida de dentro do luto?
Ana Reis: Em 1998, eu fiz uma proposta para a Siloé Pereira, que era minha professora na UCS. Eu disse que gostaria de trabalhar o luto no ambiente funerário e faria contato para, nas minhas férias, fazer um estágio. Aí, conversei com o já falecido Velocino Formolo, da Réquiem, e que controlava a Capela Cristo Redentor. Quando tive o contato com ele, estava, se não me engano, no segundo ano de falecimento do filho, o Fábio. E foi aí que ele me disse que tinha interesse pessoal na minha proposta. Ele me disse: "Eu quero poder entender a minha experiência e transformar essa minha dor e saudade em uma experiência melhor". De alguma forma eu sentia que a partir da perda do filho, todo o trabalho dele na funerária estava tomando outra dimensão.
Qual foi a repercussão desse teu estágio?
No Brasil, não havia, até então, nenhum sinal de intervenção nessa área. Lembro que comecei em fevereiro na empresa. E em maio, percebeu-se um aumento de 38% na procura por rituais funerários de mortes ocorridas em circunstâncias violentas ou repentinas. Isso tudo como resultado desse trabalho de que a empresa oferecia, com suporte e ajuda psicológica.
Depois da demanda com os familiares dos enlutados, vocês perceberam a necessidade de acompanhar e cuidar dos funcionários. De que maneira se desenvolveu este cuidado
Especificamente no ramo funerário, haviam relatos dos funcionários de pesadelos, sensações de insegurança, impaciência e intolerância. Ou seja, o nível de estresse era alto. Além disso, relatavam uma dificuldade muito grande para escutar as expressões de dor e angústia dos pais que perdiam seus filhos e também de terem de acompanhar os rituais fúnebres de crianças. A experiência deles, é o que encontramos hoje na literatura especializada, como sendo vítimas ocultas ou secundárias da dor alheia, a chamada síndrome da Fadiga por Compaixão. Na medida em que fomos cuidando desses profissionais, isso passou a ser mais tranquilo e organizado, e de certa forma, foram se encorajando e se sentindo mais competentes.
De que maneira essas pessoas enxergam a vida, por tanto contato com a morte?
Se tu for uma vez por ano em um velório, tu terá uma ideia da vida. Mas, se em uma semana tu for a 20 ou 30 velórios, tu tens uma outra dimensão da vida. E eles costumavam dizer nos acompanhamentos que fazemos: "Vocês, que caminham no shopping nos finais de semana, acham que a morte é uma coisa do outro. Nós invejamos vocês, porque nós não temos como nos proteger disso, para nós a morte é muito real".
Essa visão quase normatizada da morte, como sendo algo quase banal, é também compartilhada por quem trabalha nos cemitérios?
Um tempo atrás eu conversava com um senhor, que era coveiro. Ele é uma pessoa muito simples. Aí eu perguntei para ele: "Onde o senhor coloca toda essa emoção do seu trabalho, quando põe a cabeça no travesseiro quando vai dormir?". Ele me disse assim: "Ah, doutora, ossos do ofício...". Fiquei pensando na metáfora. Essa coisa que passa pela normose, do que já se torna natural, mas que abusa, que invade, que distorce, que deforma o aparelho psíquico, temos sempre de dar conta de diluir, limpar, organizar e assimilar. É bonito de ver que esses profissional, quando se reconhecem, quando abrem espaço para se sentir, para perceber o que aconteceu, vem uma sensação de alívio e de vitalidade.
Quais fatores ainda impedem profissionais que lidam diariamente com a morte a reconhecer que precisam tratar das suas emoções?
Primeiro, o tempo, para que os responsáveis por essas equipes possam oferecer um tempo de autocuidado e instrumentalização. Segundo, o reconhecimento do profissional pela sua dor. Ele tem de entender que investe com sua empatia, desgasta sua compaixão e o resultante disso tudo tem um custo para ele. Esse custo vai exigir dele um ciclo de recuperação. Desde coisas simples, como reconhecer que o seu dia foi pesado, criar momentos de compensação, cuidar do corpo e da alimentação e reconhecer a própria dor. Às vezes, de uma forma onipotente, a gente pensa que porque está nos bastidores, não vai acontecer nada, ou deveria ser capaz de suportar tudo. Mas a única diferença entre cuidar e ser cuidado é a cadeira onde a gente senta. Porque na virada da esquina o desastre é teu também.
Em geral, o profissional da área da saúde ainda se vê como um super-herói?
Tu sabes que esses anos me ensinaram que para as pessoa que recebem o cuidado e são acolhidas por nós é muito importante que sejamos honestos. Se um cuidador se emociona não é ruim, indica que ele não é um número. Os profissionais, especificamente, que trabalham tanto nas tragédias ou em hospitais, eles têm ainda uma grande dificuldade de buscar ajuda e de receber ajuda.
Quem mais sofre em silêncio? Homens ou mulheres?
Do ponto de vista do gênero, dos bastidores das equipes de cuidado, as mulheres têm mais facilidade de compartilhar com a colega, não em casa. Os homens têm dificuldade nas duas situações. Esses dias conversei com a esposa de um enfermeiro que me disse: "Eu sei quando meu marido teve um dia difícil, porque ele vai para casa e toma um banho longo e demorado. Penso então que o clima lá deveria estar pesado".
Ou seja, a prevenção que é tão exigida pelos médicos com pacientes, deveria ser também a lição de casa para os profissionais da saúde?
A maioria deles só nos procura quando não aguenta mais. A gente recebe profissionais da saúde que chegam aqui na clínica, diagnosticados com síndrome de pânico, depressão ou bipolaridade e tu vai estudando a história deles e vê que é uma questão clara de uma síndrome de estresse, ou de fadiga por compaixão. Ele realmente gastou todos os recursos. Ou então, percebemos que o diagnóstico é falseado porque se confunde com lutos não-reconhecidos. Lutos não do ambiente profissional, mas da vida pessoal, que ficaram atravessados. Felizmente, por conta dos inúmeros trabalhos de conscientização que surgem em universidades, hospitais e funerárias, muitos destes profissionais têm se dado conta do seu nível de estresse.
PRECISA DE AJUDA?
Luspe - Instituto de Psicologia (Av. Júlio de Castilhos, 2.845 - Caxias)
Informações: 3028.0015 e luspe@luspe.com.br
Agende-se
O que: 4ª Jornada Caxiense do Luto
Quando: 15 a 18 de outubro
Onde: UCS Teatro
Quanto: Ingressos a R$ 400. Estudantes, ex-alunos e colaboradores do Instituto Luspe contam com desconto de 30%.
Informações: (54) 3028.0015
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