Em mais uma reportagem da série Um olhar sobre a vida, publicada no jornal Pioneiro, especialistas defendem a importância e a necessidade de cuidar de quem cuida e de treinar as emoções dos profissionais da área da saúde.
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Atrás de cada porta de um quarto hospitalar tem uma rica história de vida. Não importa se o paciente está em estado terminal ou se está à espera de voltar para casa. Diariamente, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem entram e saem dessas vidas com o privilégio de conhecer muito mais do que nome, tipo sanguíneo ou diagnóstico dessas pessoas em tratamento. E meio à rotina de exames, prognósticos nem sempre favoráveis e aplicação de medicamentos, está uma pessoa que sofre, e ao seu redor familiares que sofrem e profissionais da saúde que também sofrem.
Como lidar com o inevitável? Cientistas e religiosos entreolham-se e resignados precisam reconhecer que a fé nem sempre move montanhas, e nem sempre o coquetel quimioterápico poderá dar sobrevida aos pacientes. Em meio à essa esperança, ora revestida de racionalidade, ora de espiritualidade, há pessoas como Fabiana Zouvi, enfermeira do setor da oncologia do Hospital da Unimed, em Caxias, que além de cumprir com a função de assistência hospitalar, precisa encontrar tempo para exercer um olhar de compaixão e de afeto, por pacientes, seus familiares e amigos. Ou, como ela costuma dizer, "ir além e fazer a diferença".
Fabiana foi impactada por gente assim, que fez mais do que lhe era exigido. Na época, ela trabalhava na Emercor, na central telefônica. O chamado era por conta de uma tentativa de suicídio. Por telefone, Fabiana havia percebido que não havia risco de morte da jovem, porque havia sido uma tentativa com medicamentos, e o pavor era da mãe, que não sabia o que fazer, embora a filha estivesse consciente.
— Foi apenas uma tentativa, mesmo assim a enfermeira da Emercor quis ir até a casa da jovem. Fiquei muito impressionada com a dimensão do envolvimento que ela teve. Acompanhei a conversa e fiquei surpresa como a enfermeira teve empatia com ela. Além de tranquilizar a jovem, a enfermeira ligou para o Pompéia, conseguiu um atendimento com uma psicóloga, pelo SUS, e ainda a levou de carro até o hospital para receber esse atendimento. Achei aquilo tudo muito especial, ela teve uma atitude diferente da maioria das pessoas — reconhece Fabiana, 42 anos.
De espectadora a protagonista
Não foi apenas por isso, mas esse é um dos fatores importantes na escolha profissional de Fabiana, que na época era acadêmica de Comércio Exterior. Depois de diversos estágios, Fabiana mergulhou na oncologia. Na tarde de quinta-feira, 8 de agosto, presenciou uma cena recorrentemente triste. Um paciente que voltava ao hospital, depois de alguns anos de alta. Ao lado da cama, a esposa estava ansiosa com o resultado dos exames. Fabiana, pacientemente, mas muito segura e sincera, explicou sobre a demora e, segurando as mãos da mulher, explicava que era preciso se fortalecer para o que estava por vir. Olho no olho, disse que enviaria uma psicóloga para falar com ela, se quisesse. Após o aceno positivo, Fabiana e ela abraçaram-se demoradamente.
— Confesso que não sei bem por que escolhi a oncologia. Talvez porque aqui conseguimos ver a vida através de uma outra perspectiva. Ou, ainda, de ver que o enfermeiro pode fazer a diferença no acompanhamento do paciente e dos familiares. Porque a ligação que se tem com os pacientes, por causa das internações frequentes, é muito forte — revela, emocionada.
Fabiana, que empresta o ombro aos pacientes e familiares deles para que sofram, para que desabafem, para que lamentem ver a vida secar, não pôde sequer segurar na mão do pai, que morreu neste ano, na hora da partida. Isso porque Rafael Diogo estava em um leito em um hospital de Portugal. Então, enquanto Fabiana abraçava a mulher de um de seus pacientes, deixava correr a lágrima do seu pesar, na empatia com a tristeza dessa mulher.
Mãe de dois filhos pequenos e mulher de um médico, Mateus Facchin, Fabiana passou por uma dolorosa perda há pouco tempo, na oncologia. Uma das pacientes, mais jovem que ela, com um filho de dois anos, morreu.
— Ela nunca quis que levassem o filho para visitá-la no hospital, mas nós já sabíamos que ela não iria sobreviver. Eu fui até o quarto e disse a ela que achava que estava na hora de enfrentar isso e permitir que o filho fosse vê-la. "Mas eu estou tão ruim assim?, ela me perguntou. Eu respondi: "Tu está pior do que hoje pela manhã" _explicou Fabiana, com sinceridade, mas sem perder a ternura, segurando na sua mão com os olhos fitos no olho dela.
Na manhã seguinte, Fabiana soube que a mulher havia morrido e que o marido e o filho puderam estar juntos por mais aquelas preciosas horas.
— No meio desse processo, é claro que tu passa a prestar mais atenção à vida. E confesso que muitas vezes eu penso: Será que eu mereço tudo de bom que eu tenho? — diz, sem conseguir segurar as lágrimas e a voz trêmula.
— Eu nunca ousaria tentar entender porque ela e não eu. Vai muito além do entendimento científico que temos. Eu sou muito grata a Deus pela minha saúde, a da minha família e a dos meus filhos. Minha satisfação é quando a gente consegue fazer a diferença, por menor que seja.
A importância de treinar emoções
Numa tarde qualquer, um avô passeia com seu netinho. Juntos, param em uma banca de doces, enquanto o avô paga pela guloseima, o menino desprende-se dos seus cuidados e acaba sofrendo um acidente de trânsito, que resulta na amputação imediata de uma das pernas. Em fração de segundos, o que era doce torna-se amargo. Quando entram os dois na emergência do Hospital Pompéia, o menino sangrando muito, na maca, e o avô, desesperado e cambaleante, com uma dor impossível de descrever, não passam batidos pelo olhar atento da psicóloga Kátia Gazzola Viana, 57 anos, sendo 13 deles, no Pompéia.
— Vi esse avô, na recepção, em estado de choque, e quando entro na sala de atendimento, vejo a equipe completamente desorganizada. Em segundos, reuni a equipe de enfermagem em uma sala. Uma delas, ficou tão regressiva na dor, que literalmente deitou no meu colo, chorando. Outra dizia, que gostaria de ir pra casa, porque estava preocupada, porque o filho havia ficado sozinho em casa com a avó — recorda Kátia.
Enquanto choravam e relatavam suas dores, Kátia abraçou uma por uma da esquipe de enfermagem.
— Aí, não tem livro nenhum que escreva o que a gente tem de dizer e fazer. Numa hora dessas temos de conciliar sim, muito estudo, mas muita condição de ser. Chamo a essa "condição de ser" reconhecer quem nós somos no atendimento, do que damos conta e do que não damos conta. Porque também precisamos cuidar de nós mesmos — defende Kátia.
Toda essa conversa não durou mais do que dois ou três minutos e encerrou com Kátia declarando:
— Apesar de vocês estarem desse jeito, e com essa dor, o que eu enxergo aqui é que vocês são uma equipe capaz de dar conta. Porque se estivessem ali fora muito fortes, aí é que eu ia me preocupar. O que eu enxergo é humanidade e a condição de poderem dar conta. Agora, a gente vai se abraçar aqui, vamos sentir a força que tem entre nós e vamos voltar para lá, porque nós escolhemos fazer isso. E vocês escolheram fazer isso, porque existe dentro de vocês a sensibilidade para realizar esse trabalho.
A psicóloga Ana Reis, 48 anos, fundadora do Instituto Luspe e das redes de clínicas especializadas em luto, separação e perdas, defende um olhar de atenção para a vida dos profissionais da saúde, e outros "cuidadores", como bombeiros, policiais e líderes religiosos, porque são eles que enfrentam situações de perigo e morte, ou são os que acolhem os que sofrem.
— Equipes treinadas aprendem a desligar o emocional temporariamente para que possam agir dentro do racional, dentro da melhor maneira possível, claro. Mas esse desligamento é sempre parcial, porque há um sentimento de compaixão, que faz com que a equipe vá em direção do cuidado. Quando a situação emergencial passa, ou no fim da jornada diária desse trabalhador, ensinamos a "religar" e a descongestionar as emoções. Nessa fase, é importante refletir: "O que foi eu senti?", "O que eu aprendi com o que eu fiz?" — orienta Ana.
O maior desafio, entende Ana, é lidar com o desamparo:
— A maioria dos profissionais trabalha em um situação de desamparo, não apenas emocional, mas também do ponto de vista técnico e estrutural, e acabam tendo de lidar com a situação sozinhos.
Por isso que Kátia acredita ser vital o cuidado para quem cuida.
— Precisamos cuidar dos profissionais da saúde para que eles possam cuidar melhor ainda dos pacientes. Quando esses profissionais são escutados na sua dor, e tem confiança em abrir o que está acontecendo, esses funcionários adoecem menos, e também ocorre uma sintonia melhor nas equipes, e consequentemente uma rotatividade menor. Porque muitos mudam de instituição em instituição como uma fuga, mas a dor vai junto.
Agende-se
O que: 4ª Jornada Caxiense do Luto
Quando: 15 a 18 de outubro
Onde: UCS Teatro
Quanto: Ingressos a R$ 400. Estudantes, ex-alunos e colaboradores do Instituto Luspe contam com desconto de 30%.
Informações: (54) 3028.0015