Filhos sem pais são chamados de órfãos. Maridos e esposas que perdem seus cônjuges são viúvos. E qual é a palavra que se usa para dar nome aos pais que perdem seus filhos? Não há nenhuma na língua portuguesa que os defina, como também não há verbete algum que defina a dor desses pais.
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Nesta reportagem da série Um olhar sobre a vida, há relatos de como alguns pais têm lidado com a dor da morte de seus filhos. Esses pais têm recebido o suporte do Grupo Anjos Secretos, do Luspe – Instituto de Psicologia, de Caxias, há 17 anos. O grupo foi iniciado por Rosemari Rotta, 60 anos, mãe de Luciana, que morreu aos 17, vítima de um acidente de trânsito.
– É uma rede de apoio, de acolhimento das lágrimas, compartilhamos da dor e também das memórias de alegria – revela Rosemari, ressaltando que o lema do grupo é “Somar o amor e dividir a dor”.
A psicóloga Fabiana Corso, 45, é uma das coordenadoras do Anjos Secretos, ao lado de Manoela Michelli, Fabiana Valença e Ana Reis, e perdeu um filho ainda bebê.
– Meu filho faria 10 anos em setembro, e as pessoas de um modo geral ainda não consideram a morte de um bebê, por isso, é um luto não-reconhecido. Não se tem voz na sociedade para falar dessa dor. As pessoas dizem assim: “Ah, tu é nova, pode ter outro” ou “tu nem conviveu com ele”. O acolhimento é o mais importante nessa hora, por isso que aqui no grupo podemos falar das nossas dores e um acolher a dor do outro.
Leia a seguir o depoimento de pais que revelam como lidam com a morte de seus filhos:
Correr para a vida
— Meu filho tinha casado há 28 dias quando morreu. Comecei a correr depois que ele morreu, até participo de maratonas. Encontrar pessoas que o conheciam, me dá muita força nessa caminhada. Isso tudo é com muita dor, mas recebo aqui do grupo muita palavra de apoio. Vivo hoje procurando manter o equilíbrio e a calma para seguir em frente.
Jorge Pereira, 62, pai do atleta Tiago, que morreu eletrocutado em 6 de abril de 2014, durante uma prova de triatlo, em Brasília.
Falar para aliviar
— Foi dito que mataram meu filho, por causa de uma desavença, mas não sei qual era! Porque meu filho era muito querido, o bairro ainda está em luto por causa da morte dele. Nada justifica tirar a vida de uma pessoa, por mais terrível que uma pessoa seja, porque por detrás dela tem sempre um pai e uma mãe que sofrem. Que preço tem a vida hoje? Pagaram R$ 4,5 mil para tirar a vida do meu filho. Minha dor é imensa, tiraram o meu chão. Me senti acolhida, amada, apoiada nesse grupo. Porque se eu não falo do meu filho, os vizinhos falam que me esqueci dele. Mas se eu comento com as pessoas, sempre tem gente que reclama porque não paro de falar dele. Aqui no grupo é diferente, posso contar um milhão de vezes a mesma história para aliviar e ninguém vai me julgar. Minha igreja também tem sido fundamental para me ajudar.
Valdirene Ferreira da Silva Gatelli, 45, mãe do professor Vinícius, assassinado em 3 de maio de 2019.
Seguir em frente
— Foi uma fatalidade. Foram várias coisas que ocorreram para que ele caísse da ponte: era noite, estava chovendo, era uma estrada estreita, ele não conhecia o lugar, e a ponte ficava em uma curva. Depois que tu perde o filho tu passa a pensar nele 24h. Penso mais nele agora do que quando estava vivo. No primeiro ano, eu acordava de madrugada pensando nele. Aqui no grupo tentamos reorganizar a vida um pouco melhor. A única opção que temos agora é seguir em frente. Se eu cair, cai minha esposa e minha filha também.
Gilberto Becker, 54, pai do fotógrafo Patrick, que morreu em 15 de maio de 2014, em decorrência de acidente de trânsito em rodovia.
Cada um tem sua receita
— Num primeiro momento, a gente perde o chão, depois temos de criar um modelo de como continuar a vida. Não temos múltipla escolha: ou é seguir ou cair. Optei por seguir, da melhor maneira possível, até como uma forma de homenagem a eles. Não existe uma receita de como seguir em frente, cada um tem a sua. Eu vivo um dia de cada vez.
Zeli Beltrame, mãe do Pietro, que foi atropelado por uma moto em 9 de janeiro de 2004.
Dar apoio e receber apoio
— O Rodrigo saiu de casa dizendo que voltaria cedo e nunca mais voltou. Eu ajudei a fundar esse grupo e atualmente eu e meu marido trabalhamos em um centro espírita, onde também encontramos muita ajuda. Lá temos recebido muitos casos de adolescentes com tentativa de suicídio. Ajudar é uma forma também de me sentir melhor.
Gema Vila dos Santos, 68, mãe do Rodrigo que morreu há 17 anos, vítima de acidente de trânsito
Divisor de águas
— Sou marinheira de segunda viagem. Eu achei que não ia suportar, que não ia dar. Todos dizem que no velório (do segundo filho) eu dizia: "Uma vez eu aguentei, mas duas eu não vou suportar". Mas logo em seguida, uma pessoa que vinha no grupo, e por coincidência, o meu filho conhecia o filho dela, me convidou a participar. Os dois morreram do mesmo jeito, atropelados pelo caminhão do lixo. Eu te garanto, quando vim para o grupo foi um divisor de águas. Eu sempre digo que chorei menos depois do Brain (segundo a morrer), do que na época do Élton (primeiro a morrer). Não é menos dor, é mais acompanhamento e apoio que fez com que eu aprendesse a amar meus filhos em separado.
Neiva Bertoni, 56 anos, mãe do Élton e Brian, que morreram em um intervalo de oito anos entre eles.
Feliz, apesar da dor
— O Rodrigo tinha 20 anos. Foi uma morte diferente das demais, ele estava bem, almoçando, quando terminou caiu morto ao lado do pai. Ele caiu da cadeira, porque havia morrido de mal súbito. Simplesmente o coração parou de bater. Ficamos sem chão nos primeiros momentos. Meu marido foi ao fundo do poço, mas eu não deixei a casa cair. Dois anos depois, eu vi no jornal Pioneiro que ia começar esse grupo e pensei: "É a minha vez, e vim com a cara e coragem". É muito difícil perder um filho. Eu já tinha perdido pai e mãe, mas não é a mesma coisa. Com ajuda, a gente consegue seguir a vida e ser feliz. Mas a pessoa precisa querer ser ajudada também. Já se passaram 19 anos, mas meu último pensamento do dia é no Rodrigo quando me deito e já acordo pensando nele.
Iara Dalla Chiesa, 70, mãe do Rodrigo, que morreu há 19 anos, de mal súbito, em casa.
Falar sem ser julgada
— Faz um ano que o Teylor morreu e pelo menos uns quatro meses que venho no grupo, que tem me ajudado muito. Eu estava em um período muito triste, isolada, e só pensava em me matar. É difícil ouvir das pessoas: "Ah, tu é nova, vai ter outro ainda, e ele só tinha 10 meses". Mas ninguém entende que um dia de vida já é muito. Com 10 meses ele já pedia "mamá". O grupo é o único lugar que eu posso falar, sem ninguém me julgar. Porque enquanto eu falar dele, para mim ele está vivo.
Mayara Martins Terra, 27, mãe do Teylor, que morreu aos 10 meses, há pouco mais de um ano.
Caixa das memórias
— Meu filho nasceu com de três quilos e teve de fazer uma cirurgia. Ficou 24 dias na UTI e depois morreu. Faz seis meses, mas é muito dolorido. Me lembro que um mês depois eu passei a frequentar o grupo, e fui atrás de psiquiatra e de psicóloga. Me disseram que eu tenho muita coragem, porque sou mãe de um anjo. Me disseram que geralmente as mães de anjo não vêm, elas sofrem sozinhas e caladas. Eu ainda tenho uma sensação orgânica, vontade de sentir o bebê e de amamentar. Me ensinaram a fazer um caixinha com todas as recordações dele. Porque a gente acaba doando tudo que era do bebê, achando que assim vamos nos livrar da dor. Mas a dor fica com a gente. Como as pessoas não querem me ouvir, principalmente quem já é meio depressivo, eu tenho vindo ao grupo, que tem me ajudado muito.
Valeria Andreatta, 37, mãe de um bebê que morreu há seis meses, dias depois de nascer.
Precisa de ajuda?
Grupo de Apoio a Pais Enlutados - Anjos Secretos
Reuniões nas quintas-feiras, das 19h às 21h.
Luspe - Instituto de Psicologia (Av. Júlio de Castilhos, 2.845 - Caxias)
Informações: 3028.0015 e luspe@luspe.com.br
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