Projetar o futuro, antes de mais nada, é um exercício de compreensão do passado. Para além da filosofia que a frase sugere, é preciso entender que toda terra conta uma história. No caso da Serra gaúcha, o território foi explorado, sobretudo a partir do final do século 19, com a chegada dos imigrantes italianos, alemães, poloneses, e por aí vai.
Depois de adaptados em meio à densa floresta que aqui encontraram, passaram a desenvolver atividades fabris. Vieram os moinhos, as tecelagens e as metalúrgicas. Mas quem foca apenas nas mais recentes soluções de mobilidades elétricas, desenvolvidas por Randon, Marcopolo e FNM, exibidas até para o presidente Jair Bolsonaro, em sua visita a Caxias do Sul na última semana, se esquece do percurso até aqui, deixando para trás a herança e as raízes que essa terra revelam.
Esse exercício, aliás, de rever o passado, entender o presente e pensar o futuro é o DNA do caderno +Serra, que completa 200 edições nesta segunda-feira, dia 12. Por isso, essa reportagem vai dissecar o conceito, a mentalidade e a aplicação do que vem a ser o conjunto de ações para efetivamente enxergarmos Caxias e a Serra dentro do escopo do que vem a ser uma Cidade Inteligente (CI).
Propor esse mergulho nesse tema que é central em todas as discussões que miram o futuro dos centros urbanos, não é tarefa simples, porque pressupõe, inclusive, abandonar velhas crenças. É como se precisássemos quebrar a velha escrita do futebol: “em time que está ganhando não se mexe”.
Antes da imersão, Pedro Bocchese, doutor em Ciências da Linguagem e diretor da Núcleo Sistemas e diretor de P&D do Grupo Uniftec, nos explica o significado do termo.
— Segundo a Fundação Getúlio Vargas, Cidades Inteligentes são sistemas de pessoas interagindo e usando energia, materiais, serviços e financiamento para catalisar o desenvolvimento econômico e a melhoria da qualidade de vida. E é com essa reflexão que compreendo os relacionamentos e as interações onde a tecnologia busca coletar dados e usá-los para gerenciar recursos e ativos eficientemente, ou seja, a principal matéria prima para a composição e oferta desses serviços serão os dados coletados nos milhares de sensores disponíveis.
Por outro lado, Bocchese salienta que a vida em uma cidade inteligente vai além da tecnologia aplicada em um território.
— O propósito de uma smart city (termo em inglês mais empregado na atualidade) vai além do aspecto tecnológico de uma cidade hiper conectada e, sim, na oferta de serviços inteligentes a seus cidadãos. No meu entendimento não se aplica somente ao que chamamos de cidades super tecnológicas, claro que temos que compreender que a tecnologia faz parte da transformação de cidades tradicionais para smart cities. Essa transformação, no entanto, está muito ligada a aspectos de comportamento e relação entre pessoas e seus contextos/objetos do que propriamente tecnologia de ponta — justifica.
Paradigmas a superar
A Giovana Ulian é doutora em urbanismo e uma das coordenadoras do Projeto São Pelegrino, que desenvolve iniciativas em centralidades urbanas em Caxias do Sul. Para ela a visão de uma cidade inteligente passa pela metáfora de um prédio em construção. Cada andar, diz ela, reserva suas descobertas. Por isso, Giovana defende a ideia de que todos precisam compartilhar suas “visões” em cada um destes andares, para que seja possível transpor barreiras, que nem sempre são físicas e de infraestrutura.
— Precisamos ter a consciência de que não teremos a cidade de Caxias inteligente de uma só vez. Teremos de trabalhar com uma espécie de “oásis de inteligência”. Entendo que precisamos começar a incluir “pequenos locais” em que as pessoas possam olhar para este espaço e entender o que precisará ser feito no restante da cidade — argumenta.
O desafio, segundo Giovana, não é apenas de viés tecnológico, mas também humanista.
— Os pontos de partida para uma cidade inteligente são pessoas com inteligência moral e intelectual. Antes de pensar em tecnologias e equipamentos, precisamos de pessoas que já enxergaram que o terceiro andar existe, mesmo que a grande parte ainda esteja no primeiro nível.
Janaína Macke, professora e pesquisadora da UCS e pós-doutora em Ciência do Território, também compartilha da visão de Giovana, que é, sim, crítica, mas construtivista. Elas compartilham, inclusive da ideia de que, atualmente, são indissociáveis os termos cidade inteligente e desenvolvimento sustentável.
— Hoje, um dos principais aspectos ressaltados na discussão sobre cidades inteligentes é que se tenha qualidade de vida. Porque, no final das contas, queremos nos desenvolver, mas de uma forma que seja sustentável. Por isso, essas cidades que são criadas do zero, são artificiais, elas não têm território vivido e nem praticado. São cidades como “bolhas”. Criam um ambiente artificial e colocam as pessoas lá. Isso não se sustenta — salienta Janaína.
Ou seja, simplesmente aplicar um conceito de mundo, mesmo que seja dentro de um espaço criado a partir do zero, é negar a herança daquele território e do seu entorno. Sendo que, a essência de uma cidade inteligente justamente é sua capacidade de conexão, e como tem sido ressaltado por Giovana e Janaína, não se trata apenas de aplicar tecnologia. A conexão, antes de mais nada é entre as pessoas.
Para Vinicius De Tomasi Ribeiro, especialista em Cidades e professor de Arquitetura e Urbanismo na FSG, para que realmente se estabeleçam as conexões necessárias a fim de se criar um ambiente favorável para se estabelecer as bases desse novo mundo, passam por cinco camadas de conscientização.
— Começa por entender que a cidade é o resultado da vida comum e que a referência é, e sempre será as pessoas. Segundo, entender que uma cidade inteligente não é medida pela oferta de tecnologia, mas pelo processamento e uso dela para unir e melhorar a qualidade de vida dos moradores. Terceiro é a escala: uma CI não começa por um projeto de cidade, mas, sim, por um projeto dentro da cidade. Quarta, pela ousadia, pelo pensamento disruptivo. E por fim, valorizar nossos talentos e a nossa gente — diz Ribeiro.
Bases para esse novo mundo na Serra
Um projeto de futuro não se estabelece tão somente na imposição de um projeto político, por exemplo. É consenso de que esse novo mundo só será alcançado a partir da comunhão dos mais diversos atores, do poder público à iniciativa privada, passando pela academia em sua interação com a sociedade de um modo em geral. Mas é sempre importante revelar o que já se tem feito em prol desse planejamento com perspectivas de colocar Caxias do Sul no mapa global, sem que seja preciso apagar suas raízes.
— É impossível falar de cidades inteligentes sem a participação do poder público municipal e do cidadão. Por isso, essa evolução passa, necessariamente, pela sensibilização e educação desses públicos sobre o assunto. Atualmente, é possível destacar iniciativas vindas da academia, como o Observatório de Cidades Inteligentes da UCS; da sociedade civil, com o projeto Laboratório Urbano; da iniciativa privada, como o Mobility Hub do Instituto Hélice; o Trinopolo com a frente de Internet das Coisas; e o Inova RS, com o projeto de Hub de Cidades Inteligentes — destaca Thomas Job, executivo do Instituto Hélice.
Seguindo o mesmo discurso, Pedro Bocchese revela outras iniciativas focadas em criar as bases possíveis para esse novo mundo que se descortina.
— Existem diversas ações sendo realizadas paralelamente, tanto em instituições de ensino com protótipos de veículos autônomos e simuladores em ambientes 3D, como no caso da Uniftec, aproximando empresas como Marcopolo e Randon trocando experiências e conhecimentos para construção de pilotos, além dos movimentos do poder público, MobiCaxias e os diversos APLs (Arranjos Produtivos Locais). Tenho certeza de que em breve estaremos visualizando nas ruas muitos desses protótipos/pilotos. Inclusive, há 15 dias, saímos com diversas câmeras acopladas em um carro fazendo esse reconhecimento de objetos e mapeamentos das vias em 2D.
Por outro lado, Vinicius Ribeiro entende que os alicerces desse novo futuro devem passar, sobretudo, por um melhor alinhamento de visão entre todos os atores envolvidos.
— A Região Metropolitana da Serra Gaúcha está há oito anos precisando sair do papel. Há dezenas de pesquisas nas universidades que estão prontas sobre cidades para serem colocadas em prática. Nossa região tem 34 roteiros turísticos que não conversam entre si. Nós temos diversas iniciativas comunitárias visando melhoria de espaços públicos da cidade tornando-os mais de convivência e menos de passagem. O urbanismo inteligente passa pela legitimação de alguns processos para gerar confiança e envolvimento da comunidade. Se fizermos isso em um projeto, replicaremos essa confiança e estratégia nos demais — acredita Ribeiro.
Cidades da Serra não são inteligentes
O ranking Connected Smart Cities mapeia onde estão as cidades inteligentes no Brasil. Ele é elaborado pela consultoria Urban Systems e divulgado todo ano, no mês de setembro. Em 2020, abrangeu 673 municípios do país com mais de 50 mil habitantes. Portanto, da Serra Gaúcha, apenas Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Farroupilha e Vacaria estiveram aptas a participar. De acordo com o levantamento, as quatro cidades da Serra que frequentam o estudo não são cidades inteligentes.
O ranking é desenvolvido com base em 70 indicadores que buscam retratar inteligência, conectividade e sustentabilidade em 11 setores, que compõem rankings setoriais. São Paulo aparece em 1º lugar na classificação geral. A participação de Caxias recuou em relação ao ranking de 2019. Caxias está na posição 94 do ranking geral nacional. Está quase saindo fora do ranking das 100 cidades mais inteligentes do país. Em 2019, estava na posição 70.
Afora Caxias, apenas Porto Alegre, na nona posição, e Santa Maria, em 42º lugar, são as únicas cidades gaúchas que integram o grupo. Da região, as demais cidades, Bento Gonçalves, Farroupilha e Vacaria, não aparecem entre as 100 primeiras.
Caxias só aparece em quatro rankins setoriais: meio ambiente, empreendedorismo, tecnologia e inovação e economia. Em 2019, aparecia em seis. A cidade não aparecia em 2020 nos rankings setoriais de mobilidade e acessibilidade; urbanismo; saúde; segurança; educação; e governança.
Os resultados da região são modestos. Nos sucessivos rankings do Connected Smart Cities não há evolução no sentido de as cidades da Serra se tornarem mais inteligentes. Pelo contrário, há retrocessos. Uma evidência de que ampliar o apoio tecnológico, a conectividade e as práticas sustentáveis nas cidades não tem merecido atenção das administrações.
O resultado do Connected Smart Cities 2020 pode ser conferido neste link.