Dois anos, quatro meses e 25 dias depois, a Justiça de Santo Antônio da Patrulha realizou, na tarde de quarta-feira (28), a primeira audiência sobre a morte de Barbara Andrielli Mendes de Moraes, 15 anos. A garota morreu enquanto andava na carona de uma moto, na freeway, no Carnaval de 2019, após ser atingida por uma BMW X5 conduzida por um médico. Segundo denúncia do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Leandro Toledo de Oliveira dirigia "bêbado e em alta velocidade".
O caso demorou 85 horas para ser registrado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) e só foi comunicado à Polícia Civil após a reportagem de GZH procurar informações oficiais sobre o acidente. O condutor não foi submetido ao bafômetro, detido ou levado para uma delegacia. Os três policiais envolvidos foram investigados pelo Ministério Público Federal, que concluiu que cometeram prevaricação, quando um servidor público deixa de atuar com suas obrigações para satisfazer interesse pessoal, apesar de o motivo não ter sido identificado.
Na audiência, foram ouvidos os pais de Bárbara, que viajavam em uma motocicleta ao lado da que ela estava e também foram atingidos pelo carro, o condutor da moto em que a menina estava, que é amigo da família, a enfermeira do hospital de Santo Antônio da Patrulha que atendeu o médico logo após a colisão, um atendente do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e um dos policiais rodoviários. As seis testemunhas foram arroladas pelo Ministério Público.
O médico réu chegou ao fórum acompanhado de três advogados. Ele deve ser ouvido pela Justiça em outra oportunidade.
A audiência desta quarta (28) ocorreu exatos 878 dias após a colisão. O pai de Bárbara, Douglas Samuel Ozório de Moraes, uma das testemunhas ouvidas, não entende a lentidão que o caso encontrou no judiciário. Ele e sua esposa - duas testemunhas ouvidas nesta quarta - dizem sequer ter recebido a intimação e se deslocaram para o fórum após saber da audiência por outras pessoas.
— Marcam audiência, não vem intimação, ninguém se entende, ninguém sabe de nada. Isso tudo começou estranho lá no começo, quando teve o acidente e nada foi registrado, e de novo vem essa confusão — lamenta Douglas. Trabalhando como motoboy, ele precisou acertar com um colega para que o cobrisse e pudesse ir até a audiência sobre a morte da própria filha.
— É uma sensação de injustiça, de impunidade — complementa a esposa de Douglas e mãe de Bárbara, Rosângela Lopes Mendes.
O promotor Camilo Santana entende que as testemunhas confirmaram o que já haviam dito durante o inquérito policial, reforçando a tese da acusação, que denunciou o médico por homicídio com dolo eventual de Bárbara, três tentativas de homicídio contra o condutor da moto e os pais de Bárbara, além dos agravantes de emprego de meio que resultou perigo comum (carro) e recurso que dificultou a defesa da vítima.
Ainda faltam ser ouvidos o réu e outras testemunhas da defesa e da acusação, antes do processo chegar em sua fase final.
Em nota, os advogados Matheus Gonçalves dos Santos Trindade e Karina Mombellim, que defendem Leandro Toledo de Oliveira, afirmam: "As provas testemunhais colhidas na audiência corroboram com a tese defensiva de que o caso não se trata de homicídio por dolo eventual, mas sim de um trágico acidente de trânsito que infelizmente resultou na morte de uma das vítimas. A defesa continuará trabalhando no caso e buscará o correto enquadramento jurídico de eventual conduta".
Juiz diz que ataque hacker e pandemia atrasaram o processo
Procurado por GZH para comentar a demora no processo, o juiz Felipe Roberto Palopoli, da 1ª Vara Judicial da Comarca de Santo Antônio da Patrulha, afirmou que o ataque hacker que o Tribunal de Justiça sofreu e a suspensão dos prazos processuais com a pandemia atrasaram o andamento do caso.
— A demora na tramitação de processos, como se vê, não é exclusiva desse feito em si, mas sim de todos os processos físicos e daqueles que dependem de audiência, na medida em que as restrições sanitárias a serem observadas limitam sobremaneira o bom andamento dos processos.
O caso Bárbara em linha do tempo
3/3/2019 – Batida na freeway mata Bárbara e fere seu pai, mãe e amigo. Testemunhas dizem que o motorista apresentava sinais de embriaguez. Médico, com CNH suspensa, declara ter crise de asma, é levado para hospital e liberado sem sequer comparecer em uma delegacia ou passar por bafômetro
6/3/2019 – Enquanto GZH procurava informações sobre o acidente com autoridades, o caso é registrado pela PRF na Polícia Civil, 85 horas depois. Nem sequer a assessoria de comunicação da corporação no Rio Grande do Sul sabia do ocorrido. A reportagem tem acesso ao documento e percebe que o médico não foi submetido ao teste do bafômetro. A PRF diz que vai abrir sindicância para apurar os fatos
7/3/2019 – Procurado pela reportagem, o delegado responsável pela investigação, Valdernei Tonete, afirma que o caso não será prioridade e será apurado "na medida do possível"
8/3/2019 – Após a entrevista, a chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Nadine Anflor, determina que a delegacia priorize a investigação, diz que o delegado se enganou e oferece agentes para reforçar a equipe
14/3/2019 – Os três policiais rodoviários que atenderam o acidente prestam depoimento em sindicância interna para esclarecer o motivo na demora para registrar a ocorrência e de não submeter o motorista ao bafômetro
20/3/2019 – Defesa diz que médico envolvido em acidente com morte na freeway não sabia que estava com CNH suspensa e que ele não havia bebido
22/3/2019 – Mãe de adolescente recebe alta do hospital. Em junho, ela ainda apresenta dificuldades de locomoção
9/4/2019 – Médico é indiciado pela Polícia Civil, um mês e seis dias depois do acidente. Apesar de constatar embriaguez, polícia entende que o caso é um homicídio culposo – sem intenção de matar. Policial rodoviário é indiciado por prevaricação
12/4/2019 – Quatro dias após indiciamento, reportagem de GZH tem acesso ao inquérito. Até então, delegado não havia detalhado a investigação para a imprensa. Documento aponta que médico voltava de festa, supostamente embriagado e em alta velocidade
8/5/2019 – PRF entende que houve "possível erro de conduta" de agentes e abre processo que pode resultar em demissão de policiais. O prazo da apuração termina em julho
11/6/2019 – Ministério Público diverge da polícia e diz que médico cometeu homicídio com dolo eventual – assumindo o risco dos seus atos
19/6/2019 – Justiça torna réu motorista por homicídio qualificado com dolo eventual e três tentativas de homicídio
8/7/2019 - PRF pede 60 dias para finalizar processo contra policiais
10/9/2019 - Após seis meses, PRF pede mais 60 dias para terminar a investigação interna
6/11/2019 - Investigação contra policiais por demora de 85 horas para registro de acidente com morte é novamente adiada
20/1/2020 - Após 10 meses, PRF colhe depoimentos de agentes que demoraram 85 horas para registrar acidente com morte
3/3/2020 - Após um ano da morte, família da menina ainda aguarda término da investigação contra policiais e longo processo na Justiça
21/05/2020 - Após mais de um ano, PRF finaliza apuração contra agentes que demoraram 85 horas para registrar acidente com morte. Punição ainda não havia sido aplicada.
19/06/2020 - PRF determina suspensão a policiais.
06/07/2020 - MPF oferece multa a policiais que demoraram 85 horas para registrar acidente com morte na freeway. Valor é pago, evitando abertura de processo judicial. Procuradora entendeu que policiais satisfizeram interesse pessoal ao não agir como deveriam, cometendo o crime de prevaricação.
28/07/2021 - Justiça faz a primeira audiência sobre o processo, dois anos e quatro meses depois.