A certa altura da terceira temporada de The Crown, a rainha Elizabeth II reflete sobre o desafio (e a arte) da família em se manter exposta e ausente dos holofotes ao mesmo tempo. O trecho do drama biográfico da Netflix parece antever a DR familiar provocada pelo terremoto intramuros que estremeceu o Palácio de Buckingham nas últimas semanas, após o anúncio da decisão do príncipe Harry e da esposa, Meghan Markle, duquesa de Sussex, de se distanciarem da família.
Na prática, eles querem deixar de ser "membros seniores" da realeza, no glossário da monarquia, algo como uma licença para viver como plebeus. Era o momento da exposição, planejada ou não, de que falava a monarca da ficção.
A decisão do casal atraiu imediatamente os holofotes do planeta, rivalizando em interesse do público com a quase guerra entre Irã e Estados Unidos, jogando a polêmica do Brexit para notas de rodapé dos jornais e revelando as entranhas da monarquia mais famosa do mundo. Como tudo o que acontece com a família real britânica, o desejo de Harry e Meghan, expresso em um post no Instagram, até onde se saiba sem o conhecimento prévio da rainha, extrapola o círculo íntimo da Corte e levanta questões históricas, políticas e sociais.
O casal, que há oito meses teve um filho, Archie, afirmou ter objetivo de "trabalhar a fim de ser financeiramente independente". Além disso, Harry e Meghan disseram que dividirão seu tempo entre o Reino Unido e a América do Norte.
Do ponto de vista histórico, a decisão é comparada a do rei Eduardo VIII, que abdicou do trono nos anos 1930 para se casar com uma americana divorciada. Pelo aspecto político, o anúncio dos Sussex provoca debates sobre a unidade do reino justamente no momento em que o país está de saída da União Europeia – algo tão inédito quanto o desejo do casal real, que rapidamente foi apelidado de Megxit.
Embora com função mais figurativa em uma monarquia constitucional como a britânica, a família real representa o reino – uma antiga concepção histórica de que a rainha é a cabeça de um corpo social, que encarna o país. Cerca de 70% da população britânica ainda acredita que esse é o modelo ideal de governo - número que vem se mantendo estável ao longo dos anos.
Há quem acredite que a iniciativa de Harry e Meghan seja uma forma de desviar o foco do debate do Brexit, que se arrasta desde que a maioria dos britânicos decidiram, em 2016, pela retirada do bloco econômico europeu. O divórcio está previsto para o próximo dia 31.
– É um antigo esquema da família real, que muitos governos inclusive aprenderam com eles: quando você tem um problema maior, é melhor jogar o foco em outra coisa. É superconveniente no momento do Brexit. Não se fala do Brexit, se fala do Harry e da Meghan – avalia o historiador Francisco Vieira, especialista em família real britânica.
Do ponto de vista social, a saída do casal tornou-se um símbolo oportuno, permitindo que os britânicos discutam sobre raça, classe, gênero e identidade nacional. Meghan é filha de pai branco e mãe negra. Divorciada, a ex-atriz de sucesso do seriado Suits em nada lembra o estereótipo do conservadorismo da realeza – postura ainda mais disruptiva do que figuras como Kate Middleton, esposa do futuro rei William, e de Diana, uma das primeiras mulheres a quebrar paradigmas na Casa dos Windsor, nos anos 1980.
– O marco foi o casamento de Charles com Diana. Mas há uma mudança nos costumes, acima de tudo introduzindo pessoas que não fazem parte do círculo da realeza: o casamento do príncipe William com Kate, que é plebeia, por exemplo. No caso da união de Harry com Meghan foi um salto, porque introduziu a questão racial e a questão da mulher com opinião própria, que já tinha uma atividade profissional destacada, mais liberal – lembra o doutor em Comunicação Renato de Almeida Vieira e Silva, autor do livro God Save the Queen - O imaginário da realeza britânica na mídia.
O anúncio da decisão coroa uma série de insatisfações já explicitadas pelo casal. Em outubro passado, eles escancararam suas angústias com relação à forma agressiva como os tabloides tratam os dois – uma carta de Meghan ao pai, com quem ela mantém distância, chegou a ser divulgada.
Os Sussex partiram para uma briga judicial contra os jornais - rompendo uma das regras preferidas de Elizabeth: "Não reclame, não explique". Na decisão de se afastar dos compromissos reais, um dos argumentos é que os dois desejam escolher para quais veículos darão entrevistas – quebrando as regras de Sua Majestade.
Mas até que ponto uma decisão como essa pode impactar as demais famílias monárquicas? Especialistas dividem o perfil da realeza entre as discretas, como as dos países nórdicos, que quase não aparecem na mídia, as superdiscretas, como a japonesa, e as mais afeitas aos holofotes. Até pouco tempo atrás, a família real da Espanha era uma das mais expostas pelo papel desempenhado pelo rei Juan Carlos, que teve participação na redemocratização do país após a ditadura do general Francisco Franco.
E embora pouco falada por aqui, a família real da Holanda é adorada pelos súditos – durante o Orange Day (em referência à Casa de Orange, dinastia do país), a população se veste de laranja para louvar os reis. O historiador Francisco Vieira lembra, por exemplo, que outras cortes adotaram medidas progressistas bem antes da britânica:
– Os reis da Suécia e da Holanda foram muito mais progressistas. Por exemplo: a sucessão absoluta na linha feminina, a herdeira do trono da Suécia, é uma mulher, a princesa Vitória. Ela teve um irmão caçula, mas o parlamento decidiu que o primeiro que nascia, levava a coroa. Depois disso, outras famílias reais copiaram. Hoje, você tem várias meninas que são herdeiras do trono da Noruega e na Bélgica, por exemplo.
Uma empresa que precisa manter sua reputação
A família real britânica é como uma empresa com séculos de história cuja tradição está enraizada em processos arcaicos e regras de comportamento que demoram décadas para serem atualizadas - quando o são. Como no mundo corporativo, equilibrar a força da tradição e a necessidade de se modernizar é um desafio difícil que pode levar à bancarrota.
Nesse sentido, gerações mais jovens tendem a contribuir, acrescentando, com novas ideias e um tanto de rebeldia, frescor à estrutura arcaica e de hábitos que, por vezes, perderam o sentido. Especialistas em marketing comparam o afastamento do príncipe Harry e de Meghan Markle das funções da casa de Windsor com uma liderança jovem, um executivo em ascensão dessa empresa centenária que abrisse mão de trabalhar na corporação.
– A família real aprendeu a lidar com a imprensa, a viver em um mundo conectado, de redes sociais, e um dos grandes atrativos são as pessoas mais jovens, os príncipes William e Harry. Harry chama mais a atenção porque tem esse perfil de não seguir tão à risca alguns protocolos: o namoro com uma atriz, o casamento, o fato de ela ser filha de mãe solteira... vários protocolos foram quebrados pelos dois nos últimos anos e isso, de alguma maneira, reverbera no jovem britânico. Ao perder esse casal, a instituição perde o contato com essa geração mais jovem de britânicos - avalia Fernanda Vicentini, professora de marketing digital da ESPM-SP.
Ainda na metáfora da empresa, a pesquisadora afirma que a realeza britânica, como marca, precisa se manter interessante para as próximas gerações.
– Quando você não tem personagens tão interessantes, pessoas com propósito, que representem novas gerações, essa conexão com o futuro se perde.
Eles vão precisar incluir a questão da diversidade de alguma outra forma, fazer outra estratégia. Vão precisar ampliar o engajamento com causas sociais para substituir esse vácuo deixado pelo Harry e Meghan
ROSANGELA FLORCZAK
professora e especialista em comunicação
A não renovação pode pôr em risco, na visão de especialistas, a sustentabilidade da própria família real, que hoje, embora seja representativa, ainda dispõe de prestígio entre a maioria dos britânicos. O afastamento do casal abre uma crise reputacional, na opinião da professora Rosangela Florczak, especialista em comunicação da ESPM- POA.
– A família real, como qualquer empresa, governo ou organização não-governamental, precisa construir, manter atualizada a sua reputação. Nessa era de hipervisibilidade, em que as marcas estão presentes no mundo e que as pessoas querem olhar individualmente para os bastidores dessa marca, manter essa reputação é mais desafiador – pontua.
O casamento de Harry e Meghan e a entrada dela na família real não foi um mero ato de rebeldia do príncipe, que sempre foi afeito à quebra protocolos. Ao contrário, houve consentimento da rainha. Além disso, a união contribuiu para mostrar a realeza perante o mundo como mais aberta, moderna e plural. Conectada com o seu tempo. Mas, como qualquer marca, esse deve ser um valor genuíno - e não apenas marketing.
–É um bom aprendizado para as empresas porque uma verdade da marca precisa ser sempre maior do que uma estratégia. Não adianta só me abrir para diversidade se dentro da minha realidade empresarial, a convivência, a manutenção dessa diversidade, eu continuo sendo hostil.
Na opinião da especialista, com Harry e Meghan morando do outro lado do Atlântico e apartados de eventos oficiais, a realeza britânica deverá voltar a investir na imagem de Kate Middleton, esposa de William e futura rainha, cujo perfil, mais conservador, está alinhado às diretrizes de Elizabeth II.
– Talvez deem mais liberdade para Kate fazer suas aventuras e aparecer de forma um pouco mais leve, mais questionadora. Ela tem um lado que demonstrou no início do casamento e que, depois, foi se enquadrando à lógica da família. Eles vão precisar incluir a questão da diversidade de alguma outra forma, fazer outra estratégia. Vão precisar ampliar o engajamento com causas sociais para substituir esse vácuo deixado pelo Harry e Meghan - diz Rosangela.
Nesse sentido, uma possível renúncia do príncipe Charles em favor de William contribuiria para arejar a monarquia, caso a crise reputacional se agrave, na avaliação das especialistas. O filho de Elizabeth, embora tenha sido precursor das mudanças na realeza nos anos 1990, ao se casar com a plebeia Diana, tem sua imagem bastante desgastada por escândalos sexuais explorados à exaustão pelos tabloides sensacionalistas à época da morte da princesa e de seu caso extraconjugal com Camilla Parker-Bowles, hoje duquesa da Cornuália. William no trono reconectaria a família real com a parte mais jovem da sociedade britânica.