Doutor em Comunicação e autor do livro God Save the Queen - O imaginário da realeza britânica na mídia, resultado de sua tese, o pesquisador Renato de Almeida Vieira e Silva estuda há anos a realeza britânica como fenômeno midiático. Ele costuma afirmar que, em um mundo de realidades tão duras e cheio de tragédias replicadas pela mídia, o esplendor da monarquia, na sua caracterização teatral de desenvolver sonhos e imaginário, contribui para dar mais leveza à vida.
Em entrevista à GaúchaZH, ele analisa a recente decisão de Harry e a esposa, Meghan Markle, de se afastar dos compromissos reais, e comenta como a família real sente os efeitos da exposição, mas também usa a mídia a seu favor:
– A superexposição cria admiração, reforço da marca. Eles são uma marca – afirma.
Confirma os principais trechos:
A decisão de Harry e Meghan mostra que a realeza britânica caminha para uma flexibilização das regras ou é algo pontual?
Essa flexibilização já vem de algum tempo. O marco foi o casamento de Charles com Diana. Mas houve outras mudanças, como a sucessão de divórcios. Entre os filhos da rainha, só um não é divorciado. Isso era impensável até pouco tempo. Há mudança nos costumes, acima de tudo introduzindo pessoas que não fazem parte do círculo da realeza: o casamento do príncipe William com Kate Middleton, que é plebeia, por exemplo. No caso da união de Harry com Meghan foi um salto, porque introduziu a questão racial e a questão da mulher com opinião própria, que já tinha uma atividade profissional destacada, mais liberal. Isso vai mudando alguns desses hábitos. Outra questão é viver fora do seu país. Isso era impensável. No passado, isso seria exílio. Até se especulou, durante o bombardeio de Londres na Segunda Guerra Mundial, se a família real poderia se deslocaria para os EUA para manter a Coroa funcionando e a salvo, mas ninguém saiu do país.
Como o senhor avalia a decisão do casal do ponto de vista midiático?
A realeza passa de tempos em tempos por fenômenos ou acontecimentos dessa natureza. Mas não há precedente na monarquia britânica de uma decisão assim. Alguns comparam como o que aconteceu com o tio da rainha, Edward VIII, quando abdicou da Coroa. Mas aquele contexto, nos anos 1930, foi muito diferente e mais impactante porque ele era o rei da Inglaterra, que desiste da Coroa para se casar com uma mulher divorciada americana. Isso apressou toda a cadeia sucessória. Ao sair da função, ele passa o trono para o irmão, pai da atual rainha, que, por problemas de saúde, dura pouco. E a rainha Elizabeth II assume muito jovem o trono. É um contexto diferente.
Como são muito expostos, a família tem uma importância local fundamental. É uma monarquia constitucional, onde a rainha tem o papel de chefe de Estado. Isso funciona há quase mil anos, tem todo um sistema de representação que os britânicos valorizam".
O que Harry e Meghan estão decidindo agora é algo em busca de uma vida um pouco menos vinculada à instituição e a todas as obrigações que fazem parte dos rituais esperados da realeza. Em outros países, isso seria impensável. Você jamais pensaria isso, por exemplo, no Japão, que tem uma monarquia discreta, quase religiosa, que se movimenta de forma muito sutil. No caso britânico, a questão midiática já vem sendo colocada desde o século 19. É a realeza que torna pública suas atividades.
O período da rainha Vitória (tataravó de Elizabeth II) tem a ver com o surgimento da grande imprensa, dos tabloides e junta-se com o advento da fotografia. Esse formato de imprensa tornam a vida da família real pública. Antes, era muito segregada da população.
Hoje, como são muito expostos, a família tem uma importância local fundamental. É uma monarquia constitucional, onde a rainha tem o papel de chefe de Estado. Isso funciona há quase mil anos, tem todo um sistema de representação que os britânicos valorizam. Ela é também o símbolo da unidade nacional, porque agrega Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte. É fundamental para a unidade do país.
A realeza que torna pública suas ações, mas, ao mesmo tempo, se retroalimenta da fama?
Evidentemente. Tem o ônus e o bônus. A superexposição cria admiração, reforço da marca. Eles são uma marca. É como a Coca-Cola. A monarquia britânica é a realeza mais conhecida do mundo. A marca vem sendo revigorada. Os casamentos, tanto de William quanto de Harry, representaram suspiros de modernidade, de pessoas que estão dentro de uma nova era. O fato de serem filhos de Diana, que também teve uma exposição midiática fabulosa, reforça isso. Ela sofreu bastante (com a exposição na mídia), mas, ao mesmo tempo, se aproveitava disso. Essa maneira como a marca da realeza é tratada, a rejuvenescendo, expondo novos rostos, tem dado maior vigor e interesse da opinião pública.
No que a realeza britânica se diferencia das demais famílias monárquicas e como essa decisão pode impactar os outros reinos europeus?
A realeza britânica é bem diferente. Há as chamadas monarquias discretas, como as dos países nórdicos, onde temos inclusive uma rainha com raízes no Brasil (a rainha Sílvia, da Suécia, é filha de mãe brasileira). Os membros têm algumas atividades, mas não há superexposição. A Espanha era uma das mais expostas pelo papel desempenhado pelo rei Juan Carlos, que teve participação muito grande no período pós-general Francisco Franco, atuou para a redemocratização do país. Do ponto de vista histórico, simbólico e político, houve uma exposição muito grande até que ele se retirou de cena ao ser flagrado em um safári na África, caçando, em um momento em que boa parte da sociedade espanhola falava em proteção do meio ambiente. Foi um fim melancólico.
A realeza espanhola é a que mais se aproxima da britânica em termos de exposição?
Em exposição, sim. Mas a de maior popularidade, com exposição pública e certa devoção, é a holandesa, devido à forma com os reis agem. Eles interagem muito com a população. Existe na Holanda o Orange Day, por causa da Casa de Orange, dinastia que governa a Holanda há pelo menos seis séculos. Nesse dia, todo mundo usa alguma roupa laranja para louvar a monarquia.
De certa forma, o monarca também fez um passo interessante incorporando o elemento estrangeiro e plebeu à própria corte da Holanda, ao se casar com uma argentina. Foi um elemento novo, como aconteceu com o príncipe William ao se casar com a Kate, que vem de uma família bem sucedida na área de negócios no Reino Unido, e Harry, que se casou com uma atriz americana, com estilo de vida totalmente independente, uma mulher bem-sucedida e que lidava com a opinião pública.
Há também as monarquias extremamente discretas, como a japonesa. A casa real japonesa parece um convento, você entra e ninguém fica sabendo. São extremamente discretos, quase religiosos.
Harry e Meghan se dizem cansados da perseguição dos jornais sensacionalistas e querem decidir, eles próprios, com quem dialogar, sem obedecer às regras da monarquia. Que papel teve a mídia britânica nessa decisão?
Harry e Meghan têm o sentimento, apoiado em fatos, que parte da mídia britânica e alguns jornais internacionais se colocaram de forma extremamente grosseira e preconceituos na cobertura. Quando Meghan anunciou o nascimento do filho, um chargista colocou uma foto antiga de um casal, dos anos 1930, e, no meio, um bebê chipanzé. Harry entrou com ações na Justiça.
Harry e Meghan fazem parte de uma instituição, que, por mais que tenha essa habilidade de lidar com crises, não se transforma tão rápido. Tudo precisa ser negociado. O que deixou transparecer é que já havia um processo desde o ano passado: eles tinham viajado pela América do Norte por seis meses, já não passaram o Natal com a rainha, rompendo uma tradição e, agora, vieram com esse anúncio. Isso impacta a estrutura da monarquia. Precisa ser resolvido.
E há questões práticas: quem irá mantê-los? Eles estão dizendo que vão se manter com recursos próprios. Ok, mas há outros lados. Eles são membros da realeza, têm proteção do serviço secreto, porque são passíveis de atentados. Quem paga?
Se eles vão viver no Canadá, a rainha é chefe de Estado de 16 países, inclusive do Canadá. Logo, o primeiro-ministro canadense tem evidentemente a rainha como chefe de Estado. Há uma questão política, porque, afinal de contas, eles também fazem parte dessa estrutura. Minha percepção é de que a rainha não se opôs à decisão, mas quer saber até onde isso irá para ir avaliando. Há especulações da mídia, dizendo que eles vão adotar uma "solução Obama": ele (o ex-presidente americano Barack Obama) foi uma pessoa pública respeitada, mas, apesar disso, Michelle lançou livro, que vendeu 1,2 milhão na primeira semana.
Uma exposição controlada?
Isso, o que vai exigir uma consultoria muito precisa, porque, caso contrário, desgasta a imagem. A principal preocupação da rainha é que não se aproveite da monarquia para obtenção de recursos pessoais. Isso não é bem visto pela opinião pública britânica.
William e Kate são contraponto a Harry e Meghan, até porque ele deve ser rei em pouco tempo. O casal segue o script tradicional?
Com certeza. São muito mais assentados dentro do esperado. Nada de bizarro ou exagerado, que fuja ao protocolo daquilo que é esperado do papel que venham a representar. Ele está na linha sucessória muito próxima. O pai está com 71 anos, há especulações de que a rainha, em função da idade, poderia vir a abdicar aos 95. Ela se tornaria recordista mundial no cargo.
A idade avançada já não permite que faça tantas coisas, o marido (príncipe Philip) já se retirou das funções oficiais, está com 98 anos. Acredito que a rainha fique viúva em não muito tempo. Isso dará argumento para que ela se retire, mas tem de preparar essa sucessão. O príncipe Charles assume, digamos aos 73 anos, e não será um monarca que ficará muito tempo no trono, uma perspectiva de uns 15 anos.
William já estará bem mais velho, e os filhos, crescidos. Isso vai permitir uma certa serenidade no exercício dessa sucessão. Harry, como está na sexta colocação, é muito improvável.