Sabe aqueles lugares aonde a gente chega e pensa “por que não descobri isto antes”? Pois a região rural de Bagé está exatamente nesse momento perfeito, antes de entrar nas rotas de turismo de massa e com maravilhas da natureza. Depois não vão dizer que não avisamos!
Dia 1: gruta, estâncias e vinho
Meu passeio por lá começou pelo Rincão do Inferno, uma formação rochosa radical de beleza natural incomparável, localizada às margens do Rio Camaquã, a 70 quilômetros de Bagé por estrada de terra. Atenção: é indispensável contratar um guia para chegar e entrar na propriedade, que é particular mas aberta à visitação. O valor do ingresso é de R$ 20.
O local, outrora hostil para se viver, recebeu esse nome assustador por ter servido de refúgio para descendentes de africanos que fugiam da escravidão. Como Bagé aboliu a escravatura quatro anos antes do resto do Brasil, após uma visita da Princesa Isabel, o Rincão passou a fazer parte do quilombo das Palmas, que também é composto pelos rincões dos Alves e da Pedreira e pelo Campo do Ourique. Atualmente, a comunidade quilombola local é formada por algumas famílias que são as guardiãs da identidade, da história e da tradição dos descendentes de escravos.
Mas é na experiência de aventura que está o maior interesse: pode-se fazer caminhadas, descidas de caiaque e até acampar. Tudo monitorado por Juliano Munhoz e Silvana Silva, experts na região e conhecedores da história, da natureza e das peculiaridades locais. Uma escola de cultura pampiana sem paredes.
Fiquei louca para voltar no verão e tomar um bom banho de rio entre as caminhadas. Agora, os 4ºC de temperatura não são adequados a esses arroubos aventureiros. O Rincão também foi palco das gravações de O Tempo e o Vento, filme de Jayme Monjardim baseado na obra de Erico Verissimo. Foi ali, na beira do rio, que Ana Terra encontrou Pedro Missioneiro.
Na mesma região do Rincão do Inferno, a Casa de Pedra é uma gruta gigante, ou uma brecha sedimentar, para usar o termo erudito. Serviu como esconderijo para tropas revolucionárias em vários momentos da conturbada história gaúcha. Também conhecida como Galpão de Pedra, dizem ser possível esconder 200 homens a cavalo lá dentro. Ali, no filme O Tempo e o Vento, Ana Terra esconde o filho Pedro quando sua casa é destruída pelos castelhanos. Como veem, o local entra na história real e na imaginária.
Além disso, é um lugar perfeito para criar cenários de refeições glamourosas: pode ser um piquenique ou algo mais elaborado. Nós mesmos fomos surpreendidos pela iniciativa dos guias de montar um churrasco campeiro: trouxeram carvão, linguiça e pão e criaram um almoço inesquecível, uma verdadeira travel experience personalizada. Quase chorei de tão lindo!
Esta região é palco de inúmeras possibilidades de escaladas mais profissionais e também de trilhas para todos os tipos de preparo. É só dizer o tempo e suas possibilidades físicas, que eles montam o programa na medida.
Voltando para a cidade, fechamos a exploração campeira com uma visita à Estância Paraizo. A Família Mercio é originária da Ilha de São Jorge, nos Açores, e partiu em 1690 com destino a Colônia do Sacramento. A estância nasceu cem anos após a chegada, em 1790, como parte de uma sesmaria entregue por Portugal pelos serviços militares prestados na constante guerra contra a Espanha pelos então campos neutrais da atual região de Bagé.
Tradicional fazenda de pecuária e ovinocultura desde o ano 2000, foi uma das primeiras a inovar ao implantar vinhedos na região da Campanha. Desde então, vem se dedicando ao cultivo de uvas finas, varietais shiraz e cabernet sauvignon, com mudas originárias da Itália.
Os proprietários nos receberam com carinho e nos mostraram um ambiente repleto de tradição em busca de novos rumos. Um galpão de pedra cheio de referências campeiras transformado em cave e a mangueira à sombra de um cinamomo ajudam a justificar o nome da fazenda. O maior encanto, contudo, são o parreiral e a degustação dos vinhos no entorno do mausoléu da Família Mércio. O pôr do sol emoldurou o momento sensorial, e os vinhos cabernet sauvignon Don Thomaz e Vitoria safra 2012 completaram o deleite. Recomendo agendar a visita e desfrutar desse pequeno paraíso.
O vinhedo está situado na faixa dos paralelos ideais no Hemisfério Sul para o cultivo de uvas vitiviníferas, onde também se encontram os tradicionais países produtores Argentina, África do Sul, Nova Zelândia e Austrália.
A Estância Paraizo é membro da Associação dos Vinhos da Campanha Gaúcha e, em parceria com as outras vinícolas da região, faz parte do projeto do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para a criação, em 2019, da Rota do Enoturismo da Campanha Gaúcha.
Dia 2: cenários de cinema
No segundo dia, fomos às Guaritas da Serra do Sudeste, formações rochosas que lembram a paisagem da Capadócia, na Turquia, e que são uma das 7 Maravilhas do RS. A grande vantagem é que, aqui, o lugar é todo nosso, um campo nativo com rochas que chegam a 500 metros de altura, proporcionando trilhas e pequenas caminhadas subindo nas formações para ter uma visão completa da paisagem. Nossos únicos companheiros de aventura foram uma chibarrada – um grupo de cabritos que vive em cima das pedras – e o som da natureza.
Uma sensação deliciosa é fotografar este cenário idílico e sentir-se como uma desbravadora de novos destinos. Inclusive, o cenário já apareceu em produções cinematográficas nacionais, como Anahy de las Misiones (1997), Valsa para Bruno Stein (2007), Os Senhores da Guerra (2014) e a série Animal (2014). Para fazer as trilhas ou escaladas, é necessário contatar a Associação das Guaritas, para ser acompanhado por um guia local. Chegamos a Bagé ao entardecer e, se você nunca ouviu falar da luminosidade do pampa, não perde por esperar!
Seguimos direto para a cidade cenográfica de Santa Fé, e parecia que eu estava ouvindo o Capitão Rodrigo, na pele do ator Thiago Lacerda, irrompendo no bar do Nicolau e dizendo: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!”.
Em 2012, Bagé foi um dos cenários escolhidos pelo diretor Jayme Monjardim devido à sua luminosidade (olha a luz aqui novamente!) e a paisagem ideal para as filmagens do longa O Tempo e o Vento. O filme é inspirado na maior obra do escritor gaúcho Erico Verissimo, que conta a história da família Terra Cambará até o final do século 19. Retrata a formação do Rio Grande do Sul, a formação do território brasileiro, a construção da sua cultura e a demarcação de suas fronteiras. Além de ter imortalizado personagens como Ana Terra, Capitão Rodrigo e Bibiana.
O cenário está um pouco desgastado pelo tempo. Sua construção foi feita para ser efêmera, mas a comunidade pediu, e o espaço foi doado à prefeitura, que busca recursos para a reconstrução em material mais resistente. Mas a magia está presente, e a gente fica torcendo para que consigam manter vivo esse pedacinho da história recente. Enquanto isso, aproveitemos o ambiente bucólico e vejamos a beleza que ele conserva.
Seguimos com pressa para não perder o entardecer na Vila Santa Thereza, também na entrada da cidade e com um passado com muito o que contar.
A charqueada de Santa Thereza foi fundada em 1897 pelo comerciante português Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães, que chegou a ser o maior arrecadador de impostos da província, contando com 600 homens trabalhando e abatendo cerca de 100 mil reses.
No entorno da propriedade, foi edificado um amplo complexo urbano e industrial, formado pela vila de operários e pelo palacete do dono, além de capela, coreto, teatro, padaria, lagos artificiais, alfaiataria, fábrica de tonéis, restaurante popular e uma escola para mais de 60 alunos. O trilho da via férrea chegava até dentro da propriedade. Tudo está bem conservado pela Associação Pró-Santa Thereza, fundada em 2003, que mantém o patrimônio – com exceção do palacete, que já estava em ruínas.
Para fechar: o centro da cidade
Chegamos ao centro de Bagé em noite de festa. Era 24 de maio, e a população estava mobilizada para a procissão que corta as principais ruas, em homenagem à padroeira da cidade, Nossa Senhora Auxiliadora. Havia velas nas janelas e música em frente ao Instituto Municipal de Belas Artes (Imba). Iluminado pelo luar, o Museu Dom Diogo de Sousa, antiga Beneficência Portuguesa, era um primor.
Jantamos um honesto bufê de sopas no Café Tarragona, uma das belas casas restauradas da Praça Júlio de Castilhos. Também conhecida como Praça da Estação, abriga o monumento homenageando um dos personagens mais famosos da cidade, o Analista de Bagé, personagem de Luis Fernando Verissimo. Ali, o impagável dito: “Tem muito paciente que acha que o umbigo dele é o centro do mundo, quando todo mundo sabe que é Bagé”.
O centro histórico é muito gracioso e bem conservado. Muitas casas do século 19 mantêm o legado de uma passado rico e glamouroso. As praças dão um clima de um lugar onde se pode aproveitar o tempo, vendo a vida passar.
A antiga estação férrea, inaugurada em 1884, é testemunha de um passado em que o trem de passageiros trazia autoridades, que eram saudadas por bandas musicais. Bagé, então, estava ligada a Pelotas e Rio Grande por via férrea; assim, o gado e o charque bajeenses iriam a outros mercados. O progresso chegava, e a cidade se orgulhava. Para finalizar o passeio, fizemos um pit stop na LEB, Livraria e Café Bageense.
Termino aqui citando Luis Fernando Verissimo: “Sempre digo que Deus criou o resto do mundo primeiro e o Rio Grande do Sul quando pegou a prática, mas as pessoas dizem que isso é bairrismo”.