Passava das duas da tarde quando o telefone tocou no consultório de um renomado cirurgião em Bagé. Do outro lado da linha, um dos diretores da Santa Casa de Caridade perguntava se o médico poderia atender uma paciente. O doutor assentiu e logo uma Land Rover preta estacionou em frente ao consultório.
Com o médico a bordo, a caminhonete pegou a saída da cidade rumo ao sul, passou reto no trevo de acesso ao aeroporto e mais adiante tomou uma estrada vicinal até chegar à propriedade da enferma. A Land Rover cruzou um portão de ferro comprado em antiquário da região serrana do Rio, seguiu por um caminho em arco ladeado por trios de álamos, passou por um muro de pedras erguido para barrar o Minuano e, depois, por outro portão, recuperado de uma senzala em Pelotas.
Encarapitado no ponto mais alto da coxilha, o casarão alaranjado despontava no horizonte. Ao passar pela porta de madeira, resquício de uma capela mineira do século 18, o médico deparou com a proprietária sendo servida por um garçom de luvas brancas enquanto conversava com empresários argentinos numa longa mesa de 14 lugares. O piso aquecido e uma tela original de Francis Bacon na parede sintetizavam o fausto reunido numa casa de campanha.
Terminada a reunião, a paciente recolheu-se a sua suíte, onde foi rapidamente diagnosticada: seria necessária uma breve intervenção cirúrgica para dar cabo às dores intestinais. Levada à Santa Casa, ela percorria o bloco cirúrgico estendida numa maca quando olhou ao redor e perguntou ao médico:
— Quanto custa para fazer uma sala nova dessas?
— Bah, não tenho certeza. Talvez de R$ 2 milhões a R$ 3 milhões — especulou o doutor.
— Pois então o senhor faça um projeto e me apresente — sentenciou.
O novo centro cirúrgico da Santa Casa jamais foi projetado, mas não impediu que Zuleika Borges Torrealba gravasse com ímpeto irrefreável seu nome na história recente de Bagé. Matriarca da família controladora do Grupo Libra, um dos maiores operadores portuários e de logística para comércio exterior do país, a octogenária de 1m62cm de altura que todos os meses desembarcava do jatinho próprio rodeada de poodles gigantes ergueu no extremo sul do Brasil seu universo particular.
Benemérita da saúde, construiu uma unidade de alta complexidade para tratamento de câncer. Mecenas das artes, financiou festivais de cinema, música e literatura, restaurou casarões históricos, criou um centro cultural, patrocinou exposições e montou uma orquestra infantil com 68 instrumentistas. Devota do conforto e da boa mesa, fez uma pousada e um restaurante que se tornaram sinônimo de requinte hoteleiro e gastronômico. Ruralista temporã, fundou uma cabanha e, aliando animais premiados com avançadas pesquisas genéticas, proporcionou a primeira clonagem bovina da raça jersey no país.
Poucas pessoas restaram incólumes à passagem de Zuleika por Bagé. De temperamento mercurial e adepta do desapego financeiro, distribuiu cheques nababescos com a mesma volúpia com que desfiava impropérios.
— Vocês em Bagé pensam que nem bois — costumava dizer.
E tome R$ 90 mil para um centro de equoterapia, R$ 530 mil para a prefeitura custear as filmagens de O Tempo e o Vento, R$ 600 mil para a unidade de oncologia.
Deu carros, casas e montou negócios para pessoas de quem gostava, mas não abria mão de desancar políticos e autoridades, constranger convidados e humilhar empregados sempre que julgasse adequada uma reprimenda pública.
— São todos incompetentes — resumiu ao demitir 27 empregados do complexo cultural de uma só vez.
Zuleika foi bajulada por interesseiros, explorada por desonestos e desprezada por invejosos, mas também reverenciada por quem via nela uma mulher culta, empreendedora e generosa, capaz de resgatar uma Bagé que já não existia mais. Um dos principais polos de desenvolvimento do Estado no século 19, o município de 120 mil habitantes padece há décadas em depressão econômica. Fábricas fecharam, o comércio refluiu, emprego e renda escassearam.
Em tempos difíceis assim, a chegada da carioca Zuleika, no início dos anos 2000, foi um sopro de prosperidade. Estima-se que, de 2008 a 2014, período em que concentrou seus maiores investimentos na região, tenha desembolsado em torno de R$ 150 milhões. A origem do dinheiro levantou suspeitas veladas na cidade, quase sempre em comentários à boca pequena – das mais de 40 pessoas entrevistadas para esta reportagem, a imensa maioria pediu anonimato.
Há 50 dias, o Supremo Tribunal Federal decretou a prisão dos quatro filhos de Zuleika e determinou que ela fosse interrogada. O motivo: a suspeita de pagamento de propina ao presidente Michel Temer para favorecer uma empresa da família Torrealba, o Grupo Libra, que opera terminais de contêineres no porto de Santos (SP).
O refúgio na Campanha
Situada a 400 quilômetros de Porto Alegre e a 60 do Uruguai, Bagé é um enclave do mais genuíno ruralismo gaúcho. O solo fértil, hoje semeado com arroz e soja, sorveu o sangue de maragatos e pica-paus em escaramuças revolucionárias que deram ao bajeense as feições rudes da lida campeira e o espírito desconfiado de seus antepassados. Quando Zuleika Borges Torrealba chegou à cidade, no início dos anos 2000, todos ficaram intrigados com aquela mulher de cabelos curtos grisalhos, vestes masculinas e carregando no sotaque carioca. Comprava terras, trazia animais premiados e contratava gente a rodo para trabalhar em uma estância nos arredores do aeroporto. Zuleika conheceu Bagé pelas mãos de um dos filhos, Gonçalo Borges Torrealba. Principal executivo do Grupo Libra, Gonçalo tinha paixão por cavalos de corrida e ergueu na cidade um verdadeiro monumento ao puro-sangue inglês. À frente do haras Stud TNT, chegou a ter em suas cocheiras mais de 350 animais, alguns deles multipremiados em competições internacionais.
Antes de chegar ao Rio Grande do Sul, Zuleika viajava o mundo com o marido, Gonçalo Torrealba, filho do poeta chileno Ernesto Torrealba e enteado do ex-primeiro-ministro do governo João Goulart e ministro do Supremo Tribunal Federal Hermes Lima.
Enquanto o pai de Zuleika, o decano da navegação brasileira Wilfred Penha Borges, tomava conta dos negócios, o casal se dividia entre o apartamento em Paris, outro no Leblon e a casa em Petrópolis (RJ). Na região serrana do Rio, Zuleika adquiriu a Casa Samambaia, ícone da arquitetura brasileira e na qual durante muitos anos viveram a paisagista franco-brasileira Lotta Macedo Soares e a poeta americana Elizabeth Bishop. Apaixonada por animais e plantas, Zuleika construiu outra casa nas redondezas, onde montou orquidários, bromeliários e cactários e passou a criar animais raros ou exóticos, como veados-pantaneiros e poodles gigantes, com os quais vencia os maiores prêmios da raça nos Estados Unidos.
— Dona Zuleika gosta de animais e plantas. Gente? Até por ali — diz um íntimo conviva.
Amiga na infância de Linda Meyer, filha do poeta regionalista Augusto Meyer, Zuleika se encantava com os poemas em que "tio Augusto" evocava com lirismo a saudade do pampa. Após uma visita ao haras de Gonçalo, decidiu fincar raízes em Bagé, criando gado leiteiro. A partir de um presente do filho, a vaca Jersey Response Wonder, premiada no campeonato internacional em Madison (EUA), clonada por Zuleika e sepultada com direito a lápide, montou um plantel com mais de 200 exemplares da raça – dois deles clonados da própria Response Wonder.
Mas Zuleika queria mais. Comprou várias frações de terra ao redor de sua propriedade original e ergueu a Cabanha Da Maya, nome inspirado em uma antiga cadela de estimação. Expandiu as atividades com vacas holandesas, touros angus, ovelhas e cavalos crioulos. Exigia sempre o melhor de cada raça e não poupava dinheiro, tornando-se certeza de bons negócios para os leiloeiros. Tinha obsessão por prêmios e foi onipresente na Expointer, a ponto de circular de carrinho elétrico pelos estandes e comprar por R$ 30 mil uma casa dentro do parque.
Vaidosa, não se permitia passar despercebida onde fosse, seja levando o próprio garçom para servir-lhe sushi durante um churrasco promovido pela organização do Freio de Ouro ou assinando um cheque de R$ 700 para um menino que lhe abordou no parque contando uma história triste.
Em meados de 2009, Zuleika decidiu investir em oliveiras. Amiga de um importante político da região, pediu que ele lhe apresentasse um projeto para implantação de um olival. Acompanhado de um executivo do agronegócio, o político viajou ao Chile, onde a família Torrealba produz mirtilos e o azeite de oliva 1492. Na volta, ele telefonou para marcar uma reunião.
— Dona Zuleika, queria lhe apresentar o projeto das oliveiras...
— Que oliveiras? Não quero saber de oliveiras — sentenciou, encerrando a ligação.
Dispensar colaboradores por telefone era rotina para Zuleika. Com quase 200 empregados (38 na casa de Petrópolis, 49 no complexo cultural e cerca de cem na cabanha, todos com plano de saúde privado), pagava salário acima do mercado e levava os mais próximos para viagens internacionais, inclusive para a Antártica, e ao Rio, onde a família patrocinava o desfile da Grande Rio no Carnaval e mantinha um camarote de três andares open bar.
Em contrapartida, exigia dedicação exclusiva, 24 horas por dia. Um empregado que ousou não atender ao celular porque estava disputando um torneio de golfe foi demitido por mensagem de voz. A patroa ainda ligou para a filha dele, repreendendo o comportamento do pai. Outra funcionária foi orientada a trabalhar em casa, pois a patroa não queria mais vê-la no escritório.
O que para muitos já era esbanjamento ganhou ares de excentricidade após a morte de Wilfred, em 2005. Zuleika ficou com 51% das ações do Grupo Libra – os 49% restantes foram divididos entre os quatro filhos – e viu seu pró-labore saltar de R$ 500 mil mensais para R$ 3,5 milhões.
— Troquei Paris por Bagé — dizia, após providenciar a mudança do mobiliário de um apartamento na capital francesa para a casa de mil metros quadrados que construiu na estância.
A expansão dos negócios foi imediata. Zuleika comprou dezenas de imóveis (ainda há 25 propriedades em seu nome em Bagé), montou a Pousada Da Maya, o restaurante Porão Da Maya, a galeria Espaço Cultural Da Maya e a Maya Genética, unidade para fertilização de sêmen e embriões bovinos. Construiu um tambo e uma queijaria com equipamentos de última geração. Quem acompanhava seus empreendimentos, todos hoje desativados, garante que a maioria jamais deu retorno.
— Ela montou um tambo maravilhoso, tudo computadorizado, mas não queria vender leite — resigna-se um ex-empregado.
Ampliando o costume adquirido na casa de Petrópolis, Zuleika trouxe do Rio um veterinário especializado em animais silvestres e passou a criar lhamas, alpacas, faisões, cisnes negros, emus, avestruzes, araras e papagaios-do-congo. Os bichos eram criados soltos, em meio a poodles gigantes, ovelheiros do pampa e pastores maremanos.
— Os bichos só faltavam falar, era um manejo humanizado — lembra a fisioterapeuta Marta Röver Duarte, habitué da propriedade e que herdou um dos poodles, Jacu Da Maya, rebatizado de Nego do Borel. Outro cão, Jacó Da Maya, recebeu o nome de Sergio Moro do novo dono, um cirurgião plástico da cidade.
Criadora certificada pelo Ibama, Zuleika tinha adoração por um casal de antas, do qual insistia em tirar uma cria. As duas primeiras tentativas fracassaram, mas, na terceira, nasceu um filhotinho. Quando a cabanha foi desativada, Zuleika levou a maioria dos animais embora, mas os empregados deixaram escapar o filhote de anta, que se perdeu pela região do Espantoso.
— Até hoje algum peão vem contar que estava campereando e viu a anta passar correndo — diz um produtor com terras na localidade.