A bonança de Zuleika Torrealba sempre foi motivo de desconfiança em Bagé, embora o nome dela jamais tivesse sido citado em nenhum escândalo. Mas na manhã do último 29 de março, tudo mudou. A Polícia Federal saiu às ruas prender os amigos mais próximos do presidente Michel Temer, mas o assunto corrente em Bagé não eram os negócios suspeitos do emedebista com o advogado Sérgio Yunes ou o ex-coronel da Polícia Militar de São Paulo João Batista de Lima Filho, a todo momento citados no noticiário. A preocupação dos bajeenses residia em personagens quase ignorados pela imprensa, mas também alvos da Operação Skala: os integrantes da família Borges Torrealba.
Investigando indícios de pagamento de propina a Temer, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso decretou a prisão dos quatro herdeiros do Grupo Libra, Gonçalo Borges Torrealba, Celina Borges Torrealba Carpi, Ana Carolina Borges Torrealba Affonso e Rodrigo Torrealba. Aos 85 anos e em tratamento contra o câncer, a matriarca Zuleika Borges Torrealba foi a única a ter a liberdade preservada pela Justiça. Como três dos quatro filhos estavam fora do país, apenas Celina foi efetivamente presa. Ela foi solta quatro dias depois. Os irmãos retornaram quando a prisão já havia sido revogada e tiveram de prestar explicações à Justiça.
Tão logo desembarcou no Brasil, Gonçalo foi levado a Brasília e passou dois dias prestando depoimento à Polícia Federal. Na ocasião, admitiu ter se reunido com Temer no Palácio do Jaburu, em 2015, para resolver uma disputa judicial que permitiria a prorrogação dos contratos do grupo. Ele também confirmou que o coronel Lima havia lhe pedido dinheiro e que o oficial aposentado agia como arrecadador de Temer.
O motivo da investigação é a relação do presidente com os Torrealba e sua suposta influência nos benefícios concedidos às empresas da família. Um dos maiores operadores portuários e de logística do país, com terminais nos portos de Santos e do Rio de Janeiro, o Grupo Libra foi a única empresa a ter suas concessões prorrogadas mesmo devendo uma cifra bilionária à União. Segundo a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), que administra o Porto de Santos, a dívida é resultado de mais de 400 faturas de aluguel e movimentação de contêineres. A empresa teria pago apenas R$ 128 milhões, restando R$ 2,8 bilhões em pendências.
A questão era discutida na Justiça até 2013, o que impedia a renovação de concessões. Naquele ano, um dos principais aliados de Temer, o então deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), incluiu uma emenda à Medida Provisória dos Portos permitindo a prorrogação dos contratos mesmo para inadimplentes, desde que houvesse discussão da dívida em processos de arbitragem, sem mediação do Judiciário. De acordo com o lobista e delator da Lava-Jato Lúcio Funaro, a emenda foi feita sob medida para beneficiar o Libra, primeira e única empresa do setor até hoje a recorrer à arbitragem, cujo prazo para encerramento é setembro de 2019.
Na época, a Advocacia-Geral da União emitiu parecer alertando sobre o modo de operação do grupo. Segundo a AGU, a empresa apresentou proposta baixa para vencer a licitação, buscando depois artimanhas para descumprir regras contratuais. Em outro parecer, a Codesp também reclamou: "Trata-se de um verdadeiro modus operandi da Libra para se enriquecer às custas das autoridades de dois dos principais portos do país, em detrimento tanto dos cofres públicos quanto dos demais interessados em explorar o arrendamento", diz o documento.
Em 3 de setembro de 2015, o Grupo Libra teve suas operações em Santos prorrogadas por 20 anos, até 2035. A renovação ocorreu logo após Gonçalo Torrealba, principal executivo do grupo, pedir ao Coronel Lima que intermediasse uma audiência na Secretaria dos Portos, cujo ministro era Edinho Araújo (PMDB-SP), outro aliado de Temer. Foram três semanas entre o pedido de Gonçalo e a liberação da concessão. Tão logo Lima marcou a reunião para o empresário, enviou mensagem a Temer comunicando a intermediação bem sucedida. As trocas de mensagens entre Lima e Gonçalo e entre Lima e Temer estão em posse da PF.
Edinho seria demitido pela então presidente Dilma Rousseff em outubro de 2015. Dois meses depois, na célebre carta em que anunciava o rompimento com a petista, Temer reclamou do desligamento do aliado. "A senhora não teve a menor preocupação em eliminar do governo o deputado Edinho Araújo, deputado de São Paulo e a mim ligado", escreveu o vice.
Ao justificar os pedidos de prisão dos Torrealba e o interrogatório de Zuleika, o ministro Barroso citou contribuições eleitorais feitas ao então PMDB. Em 2014, Ana Carolina Torrealba e Rodrigo Torrealba doaram, cada um, R$ 500 mil à direção nacional do partido. Zuleika – que nunca teve cargo executivo no Grupo Libra – foi mais generosa: repassou R$ 1 milhão. Já Gonçalo e Celina doaram R$ 250 mil cada um, especificamente ao PMDB do Rio de Janeiro, controlado por Cunha.
Não é de que hoje que Gonçalo e Cunha são próximos. No final dos anos 1990, quando o parlamentar era um obscuro político do PP fluminense, o empresário já o socorria, ora com empréstimos, ora com doações eleitorais. Entre 1996 e 1997, a maior dívida contraída por Cunha foi junto ao Banco Boreal, cujo presidente era Gonçalo. Foram R$ 109.029 em 1996 e R$ 183.705,76 em 1997.
No ano seguinte, durante sua primeira campanha a deputado estadual, Cunha recebeu mais dinheiro do banqueiro. Sua prestação de contas à Justiça Eleitoral mostra R$ 216.418,68 de duas empresas controladas por Gonçalo, sendo R$ 151.909,27 do Boreal.
À época, Cunha disse que o empresário era seu amigo pessoal e o estava ajudando. Mais recentemente, em 2007, houve novo pagamento. Desta vez, a Libra Terminal, uma das empresas do grupo, destinou R$ 591.254,99 à C3 Produções Artísticas e Jornalísticas, de propriedade de Cláudia Cruz, mulher do ex-deputado. Cunha está preso desde outubro de 2016. Na mesma época, Zuleika não foi mais vista em Bagé e Gonçalo liquidou o plantel do haras, transferindo os animais remanescentes para outro stud que mantém no Kentucky (EUA), o Three Chimneys. Hoje, restam 500 bovinos de corte, cuidados por três empregados.
Embora em menor escala e frequência, os desembolsos de Gonçalo com a família Cunha em nada se assemelham ao cifrões que a mãe fez circular por Bagé. Para alguns, abordar Zuleika era certeza de obter grana rápida e sem esforço. Em 2012, quando a prefeitura tentava atrair para a cidade as locações do filme O Tempo e o Vento, Zuleika foi o alvo imediato. Em jantar na mesa de 14 lugares da estância, o então prefeito Dudu Colombo (PT) e alguns secretários queriam convencê-la a financiar a construção da cidade cenográfica de Santa Fé. Assessores de Zuleika foram contra, mas ela assentiu. Ao final do convescote, o prefeito saiu levando no bolso um cheque de R$ 530 mil.
Localizado no bairro Santa Tereza, o complexo serve como resumo mais bem acabado do turbilhão que foram os 14 anos de Zuleika Borges Torrealba em Bagé. Com 10 mil metros quadrados, abriga 17 prédios, da Câmara de Vereadores à Intendência, da casa do Chico Pinto ao bolicho do Nicolau, do sobrado dos Amaral à casa de Ana Terra. Para quem senta à sombra da grande figueira de metal, espuma e resina, onde o Capitão Rodrigo confidenciou ao amigo Juvenal Terra que pediria a mão de Bibiana em casamento, olhar ao redor é um desalento.
Carcomidas pelo tempo e pelo descuido, as estruturas de compensado definham a céu aberto. A torre da igreja padece empenada pelo vento e pela chuva. Do sobrado onde Bibiana narra a saga dos Terra Cambará, resta apenas a fachada. Por trás, tudo é ruína.
Na obra seminal de Erico Verisimo, a guerra acaba, mas Bibiana se nega a deixar o sobrado. Zuleika preferiu ir embora de Bagé, em 2015, por razões que jamais explicou claramente. Dia desses, ainda hospitalizada em São Paulo, soltou apenas um breve desabafo:
— Bagé foi um sonho que virou pesadelo.