Quem circulou pela Pousada Da Maya durante o Festival Internacional Música no Pampa (Fimp) de 2012 presenciou uma cena inesquecível. Aos 81 anos, o contrabaixista sírio François Rabbath e seu filho pianista Sylvain ensaiavam nos largos espaços internos da edificação, encantando os hóspedes que se preparavam para o desjejum.
Autor de uma canção composta a pedido de Pablo Picasso e inspirada no mural Guerra e Paz, o solista e pedagogo nunca havia se apresentando no Brasil. Seu primeiro espetáculo foi em Bagé, trazido por Zuleika Torrealba para a terceira edição do Fimp.
— A passagem de Dona Zuleika por Bagé foi um sopro de arte e de luz para todos nós — comenta a ex-secretária municipal de Cultura Heloísa Morgado.
Cosmopolita e com a erudição refinada em incursões por galerias e museus da Europa, Zuleika vivia rodeada de cultura. Quando não podia ter suas telas originais por perto, providenciava reproduções. Assim, seus peões faziam refeições sob a vigília atenta de Portinaris pendurados na parede. Durante as edições da Fimp que patrocinou, levou concertos a hospitais, escolas, praças, parques e até mesmo à Campanha, com trios de cordas tocando rodeados de bois em meio à vastidão do pampa.
Uma de suas primeiras intervenções em Bagé foi a restauração de um casarão na Avenida General Osório, onde ergueu o Espaço Cultural Da Maya. Num prédio amplo e com paredes de seis metros de altura para receber as mais variadas obras de arte, 500 crianças de colégios públicos e particulares participavam de oficinas com artistas plásticos renomados. O local também abrigou exposições de Sebastião Salgado, Iberê Camargo e duas bienais do Mercosul, antes indisponíveis aos bajeenses.
Na Pousada Da Maya, outro marco do bom gosto, ela investiu R$ 8 milhões. Importou palmeiras gigantes plantadas nos canteiros em frente ao prédio, mobiliou as suítes com objetos de antiquário, decorou-as com peças adquiridas em leilões da britânica Sotheby's e, no porão, escavou o subsolo para criar um dos restaurantes mais sofisticados do Estado onde, com preços subsidiados, pratos de R$ 300 saíam por menos de um terço deste valor.
Nem só a arte movia a benemerência de Zuleika. Após vencer dois cânceres de mama, o que a fez submeter-se à mastectomia total, e uma recidiva no pâncreas, ordenou a duas funcionárias que procurassem a Santa Casa:
— Descubram lá no que eu posso ajudar.
A resposta foi imediata: uma unidade para tratamento oncológico de alta complexidade, algo que a comunidade médica tentava implantar há pelo menos uma década. Zuleika não titubeou. Mandou comprar os equipamentos e construir o prédio. Não satisfeita, possibilitou aos médicos locais interação direta com alguns dos mais preparados especialistas do país. Via teleconferência, eles discutem em tempo real casos clínicos com o oncologista Antônio Carlos Buzaid, chefe do Centro Avançado de Oncologia do Hospital São José, no Rio, onde a própria Zuleika faz tratamento.
— Ela nos proporcionou um salto de muitos anos — diz o secretário de Saúde de Bagé, Mário Mena Kalil.
Atualmente, o Centro Integrado de Oncologia e Mama atende mil pacientes por mês, todos pelo SUS e vindos de seis cidades da região. Entre a primeira consulta, o diagnóstico por biópsia e a cirurgia para retirada do tumor, em geral se passam três semanas.
A Vieira Souto dos Pampas
Tamanho desprendimento com o dinheiro fez de Zuleika a pessoa a ser conquistada em Bagé. Seus três celulares tocavam o dia todo. Na maioria das vezes eram pessoas querendo apresentar projetos, vender imóveis, sugerir negócios. Aquela não era a primeira milionária carioca a investir na cidade. Mas era a que sacava o talão de cheque sem maior desassossego.
Em agosto de 2001, um endinheirado chegou a despencar do céu de Bagé. Era o aventureiro norte-americano Steve Fossett, que pretendia dar a volta ao mundo sozinho em um balão. Fossett havia decolado da Austrália e, 13 dias depois, sobrevoava a cidade de Bagé quando enfrentou problemas com oxigênio em virtude de fortes tempestades. Acabou fazendo uma aterrissagem forçada em uma estância. O balão, batizado de Solo Spirit, caiu no campo, desprendeu-se da cápsula e foi arrastado por quase um quilômetro. Fossett escapou sem ferimentos e foi acolhido na propriedade rural. Seis dias depois, foi embora. Deixou a lona danificada, transformada em capas para cavalos, algumas gorjetas distribuídas em dólares e o mapa de Bagé registrado na capa dos principais jornais do mundo.
Não por acaso, a estrada que liga a região onde Fossett desabou e a cidade é apelidada de "Vieira Souto dos Pampas", em alusão à célebre avenida de Ipanema, no Rio. Trata-se da BR-153, que liga Bagé à fronteira com o Uruguai e em cujas margens está a maioria dos haras instalados no município, grande parte pertencente a milionários cariocas.
Com condições perfeitas de clima, relevo e solo para a reprodução e o treinamento de cavalos puro-sangue inglês, Bagé começou a atrair apaixonados por turfe no final dos anos 1970. Um dos primeiros a montar um stud, o Haras Inshala, foi o polêmico megainvestidor Naji Nahas, acusado de causar a quebra da Bolsa de Valores de São Paulo em 1989. Sete anos antes, Nahas circulou por Bagé com o ator egípcio Omar Sharif, o eterno Dr. Jivago, de quem era sócio em um cavalo.
Bem mais discretos, outros endinheirados como o armador carioca José Carlos Fragoso Pires (Haras Santa Ana do Rio Grande), o empresário Antonio Joaquim Peixoto de Castro Palhares (Haras Mondesir), o empreiteiro Júlio Camargo (Haras Old Friends) e os banqueiros Antônio Carlos Lemgruber (Haras Bagé do Sul) e Julio Bozano (Santa Maria de Araras) sempre preferem desembarcar dos jatinhos e rumar direto para o conforto das propriedades, sem figurar nas colunas sociais.
Apesar das raras aparições públicas, os milionários promovem festas suntuosas no campo, recebendo celebridades do esporte, da música, da TV e do cinema. Houve vezes em que seis jatos permaneciam estacionados durante o final de semana no aeroporto internacional de Bagé. Com o passar dos anos, alguns enfrentaram problemas nos negócios, obrigando-se a vender os haras ou reduzir drasticamente o plantel.
Bozano, que compartilhava com Zuleika Torrealba um jato Legacy para os deslocamentos Rio-Bagé, é um dos poucos a ainda investirem na região. Com cerca de 3 mil hectares, o Santa Maria de Araras é hoje um dos mais modernos do país, acompanhando os puro-sangue do nascimento às pistas de corrida internacionais. Comedido nos gastos, jamais esbanjou e sempre pechinchava qualquer compra no comércio local.
Já o amigo Gonçalo Torrealba não poupava para garantir o melhor tratamento aos potros. Nas temporadas de monta, trazia da Irlanda um tutor para seus garanhões, fazendo-o dormir num alojamento contíguo às cocheiras. Quando alguma égua importante estava por parir, Gonçalo fazia questão de assistir aos partos do Rio, por transmissão em vídeo em tempo real. O haras, dotado de sauna, piscina e spa, chegou a ter 60 empregados no auge das atividades, pagando salário de US$ 10 mil mensais livres de despesas aos mais graduados.
É dessa época um dos animais mais festejados de Gonçalo, Leroidesanimaux, corruptela em francês de "O Rei dos Animais". Comprado em 21 de abril de 2001 do Haras Bagé do Sul por R$ 31 mil em 15 prestações, o cavalo tinha uma "pata feia", na opinião de Gonçalo, que o desprezava. Levado aos Estados Unidos, Leroidesanimaux foi considerado o melhor cavalo em provas de 1,6 mil metros na grama, vencendo o cobiçado Eclipse Awards e acumulando R$ 1,637 milhão em premiações.
Com a presença de Gonçalo cada vez mais escassa em Bagé, o dono de haras com maior assiduidade na região é Júlio Camargo. Ex-consultor da Toyo Setal, Camargo foi um dos primeiros empreiteiros envolvidos na Lava-Jato. Condenado a 26 anos de cadeia, fechou acordo de delação premiada e pagou R$ 40 milhões de multa, cumprindo cinco anos em regime "aberto diferenciado", o que o livrou da prisão. Após um período de reclusão e da venda de alguns animais, cujo leilão alcançou média de R$ 110 mil por potro, o executivo voltou a investir na propriedade. Com a ajuda do genro Daniel Maluhy na administração dos negócios rurais, está criando gado de corte, semeando oliveiras e árvores de florestamento, tudo irrigado com pivôs centrais que puxam água de uma barragem recém construída.
Quando o nome de Camargo surgiu na imprensa como um dos envolvidos na teia de corrupção revelada pela Lava-Jato, no final de 2014, Zuleika começava a desativar seus empreendimentos em Bagé. A coincidência não soou estranha para a população local. Muitos já desconfiavam de toda aquela bonança, embora o nome dela jamais tivesse sido citado em nenhum escândalo.