Ao apresentar Guernica na abertura da Exposição Internacional de Paris, em 1937, Pablo Picasso (1881–1973) alertou: "Não é uma pintura de bom gosto para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa contra um inimigo terrível chamado fascismo." Em Paris, o pintor lia horrorizado as reportagens acerca do bombardeio da força aérea alemã sobre Guernica, em 26 de abril daquele ano. Ao receber uma encomenda do governo republicano espanhol, decidiu denunciar a barbárie que depois seria considerada um teste para os bombardeios aéreos na II Guerra Mundial (1939–1945). O regime nazista apoiava o ditador Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola.
Passados 80 anos, a obra tornou-se uma denúncia universal das catástrofes da guerra. Pintada em preto e branco, com quase oito metros de largura por quatro de altura, a pintura é vista por mais de 3 milhões de visitantes todo ano no Museu Reina Sofía, em Madri. Para comemorar o 80º aniversário da obra e os 25 anos em que está sob sua guarda, a instituição realiza, entre 4 de abril e 4 de setembro, a exposição Piedad y Terror en Picasso: El Camino a Guernica.
"Guernica": da dança ao cartum, as várias releituras da obra de Picasso que completa 80 anos em 2017
A mostra contextualizará o quadro na produção de Picasso e reunirá 150 trabalhos do artista vindos de 30 instituições de todo o mundo, entre elas Centre Georges Pompidou de Paris, a Tate Modern de Londres e o MoMA e o Metropolitan de Nova York. De acordo com o Reina Sofía, será possível ver a transformação pela qual a arte de Picasso passa, "do otimismo inicial do cubismo à busca nos anos 1930 por uma imagem do mundo que recaísse entre a beleza e a monstruosidade."
O Reina Sofía também celebrará a obra com novas publicações e um arquivo digital de documentos que será disponibilizado no site do museu. Um dos livros mapeará os lugares por onde o quadro passou em seu período de "exílio" – entre eles o Brasil. Em 1953, a obra foi exibida na 2ª Bienal de São Paulo após uma longa negociação com o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). A pintura estava sob custódia americana a pedido do próprio Picasso, que não autorizou sua exibição na Espanha até que o país voltasse a ser uma democracia. A pintura desembarcaria na Espanha só em 1981, inicialmente sob os cuidados do Museu do Prado. A "Bienal da Guernica", como ficou conhecida, rendeu anedotas: os montadores teriam retirado a preciosa carga de um caminhão atolado na lama do Parque Ibirapuera, que ainda estava em construção. Diante da obra exposta, houve quem debochasse e, por outro lado, quem se deslumbrasse.
A façanha não deve ocorrer novamente, segundo Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake, que recebeu no ano passado a retrospectiva Picasso: Mão Erudita, Olho Selvagem. Além dos custos estratosféricos de transporte e segurança, retirá-la do Reina Sofía seria como retirar a Monalisa do Louvre.
– A obra só viajou por um compromisso direto do Picasso na época. Ele entendeu que Guernica atestava uma situação política europeia que precisava ser discutida em todo o mundo – diz Miyada.
Alegorias mantêm obra contemporânea
O ano de 2017 reserva outras homenagens ao quadro, com atividades nos museus do Louvre (Paris), ThyssenBornemisza (Madri) e Picasso (Barcelona), entre outros. O Louvre se adiantou à efeméride e apresentou um ciclo de filmes sobre a obra em janeiro, exibindo curtas de diretores como Alain Resnais e Emir Kusturica. Na ocasião, o cineasta Carlos Saura, que tem um projeto de filme sobre a criação do quadro, ministrou uma masterclass e assumiu ser obcecado pela pintura.
Se para uns a obra tem qualidades cinematográficas – o grande formato, as narrativas que se desenrolam em seu interior –, para outros, seus movimentos a aproximam da dança. É o caso da produtora cultural Laura Haddad, diretora do espetáculo Guernica, em cartaz em Curitiba até o dia 5 de março. Segundo Laura, a montagem ambiciona construir "uma tela viva" e sua itinerância deve chegar a Porto Alegre, embora não tenha datas fechadas.
– É uma tela universal, um clamor por justiça, contra todos os regimes políticos totalitários que vemos ainda hoje. É só ver a situação de Aleppo (Síria), do Congo, do Haiti – explica a diretora.
Um dos motivos dessa atualidade, na avaliação de Paulo Miyada, é que a obra não registra fatos específicos, mas utiliza alegorias como o cavalo atormentado e a figura que segura uma lâmpada:
– É uma pintura que conta uma história, mas que faz isso numa espacialidade inusual, com figuras sem verossimilhança, em preto e branco, usando dobras e fragmentações que são uma herança do cubismo. Isso tudo nos afasta de uma descrição documental do evento e enfatiza a potência emotiva e dramática da representação. É mais tocante reencontrar a tragédia da Guernica pela pintura do Picasso do que pelas fotos dos bombardeios ou os dados sobre os mortos.
Galeria de fotos mostra as etapas de criação da obra:
Assista a uma animação em 3D da pintura:
Veja alguns estudos feitos por Picasso para a obra: