Era impossível permanecer alheio à presença de Zuleika Borges Torrealba. Com 1m62cm de altura, corpo rotundo e cabelos alvos cortados rente à cabeça, usava sempre vestes masculinas e mantinha um estado de espírito mutante, que transitava com facilidade da fidalguia ao destempero. Era assim que dominava qualquer ambiente, fosse nos salões da aristocracia europeia, fosse nos galpões das estâncias bajeenses.
Desde quinta-feira (28), porém, a matriarca da família controladora do Grupo Libra, um dos maiores operadores portuários e de logística para comércio exterior do país, já não falava mais. O câncer contra o qual lutava havia pelo menos cinco anos tinha se disseminado e lúcida, mas calada, ela sucumbiu à doença na manhã desta segunda-feira (4), em São Paulo. Zuleika estava internada há cerca de 20 dias no Hospital São José. O corpo foi transferido para o Rio, onde será sepultada às 13h desta terça-feira.
Embora fosse dona de um gigantesco complexo empresarial, ela queria distância dos negócios portuários. Por muitos anos, seu encanto foi Bagé, o município de 120 mil habitantes na Região da Campanha onde ergueu um universo particular. Filha do decano da navegação brasileira Wilfred Penha Borges, Zuleika passou boa parte da vida viajando o mundo com o marido, Gonçalo Torrealba, filho do poeta chileno Ernesto Torrealba. Mas foi pelos versos de outro poeta, o regionalista Augusto Meyer, que ela se apaixonou pelo Rio Grande do Sul.
Quando o filho mais velho, Gonçalo Borges Torrealba, montou um haras em Bagé para criar cavalos puro-sangue inglês, a matriarca teve o primeiro contato com a terra fronteiriça. Decidida a fincar raízes, incorporou a cultura gaúcha e logo se tornou produtora rural. Comprou propriedades rurais e urbanas, adquiriu animais premiados e montou uma cabanha reconhecida pela excelência tecnológica.
— Troquei Paris por Bagé — dizia, após providenciar a mudança do mobiliário de um apartamento na capital francesa para a casa de mil metros quadrados que construiu em meio à vastidão do pampa.
Não havia limites para Zuleika. Rica e vaidosa, queria ver o nome estampado na história da cidade e não poupou recursos para tanto. Estima-se que no período em que viveu na cidade tenha gastado R$ 150 milhões. O dinheiro foi investido em uma unidade de alta complexidade para tratamento de câncer, em festivais de cinema, música e literatura e na restauração de casarões históricos. Além disso, Zuleika também apostou em um centro cultural, uma orquestra infantil, uma pousada e um restaurante. Os dois últimos se tornaram sinônimo de requinte hoteleiro e gastronômico.
Tamanho desapego financeiro a fez ser bajulada por interesseiros, explorada por desonestos e desprezada por invejosos, mas também reverenciada por quem via nela uma mulher empreendedora e generosa, capaz de resgatar uma Bagé que já não existia mais. Quem desfrutava de sua convivência destacava a sofisticação de sua cultura, o amor pelos animais e a fúria iracunda com que tratava alguns interlocutores, fossem autoridades locais ou um humilde peão de estância.
Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decretou a prisão dos quatro filhos de Zuleika e determinou que ela fosse interrogada, por suspeita de pagamento de propina ao então presidente Michel Temer. Zuleika já não estava mais em Bagé, de onde partira quatro anos antes sem despedida nem explicação. As propriedades foram colocadas à venda e ela permaneceu entre a casa em Petrópolis (RJ), o apartamento no Rio e as estadias cada vez mais longas no Hospital São José, onde às 7h30min desta segunda-feira encerrou 86 anos de uma vida longa e incomum.