O Rio Grande do Sul veio dos Açores, mas o caso da minha família é peculiar. Os ilhéus que povoaram esta parte do Novo Mundo, que foram o principal elemento europeu na formação da população gaúcha e que forneceram as bases da nossa cultura regional mais de 250 anos atrás. Tanto tempo que os rio-grandenses de hoje parecem até ter esquecido que é essa a sua origem.
No meu caso, não lembrar é impossível. Foi apenas em 1961 que meus avós venderam uma pequena propriedade rural no interior da Ilha de São Miguel, reuniram os sete filhos e fizeram a travessia de duas semanas embarcados no transatlântico Charles Tellier, para recomeçar a vida em Porto Alegre – a metrópole de origem açoriana que tem, sozinha, seis vezes mais gente dos que as nove ilhas dos Açores somadas.
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Já havia outros parentes recém-emigrados por aqui e, até entrar na escola, as pessoas com quem eu convivia não eram tanto brasileiros, mas gente dessa comunidade estrangeira – avós, mãe, tios e primos transplantados dos Açores. Por isso, cresci ouvindo histórias sobre uma geografia fantástica, talhada por vulcões, penhascos à beira-mar e rios de água fervente que corriam morro acima.
Durante muito tempo esse parecia ser um mundo distante, de fábula, inacessível, até irreal. Eu às vezes me espantava ao descobrir que Atlas volumosos sequer incluíam o arquipélago em qualquer de seus mapas, como ele se só existisse mesmo na imaginação.
Situados em um ponto remoto do Atlântico, no meio do nada, a um só tempo muito longe de Portugal e muito longe do Canadá, os Açores tinham uma incontornável aura de fim do mundo. A viagem era longa, cara, demorada. Tratava-se do último recanto do planeta ainda não descoberto pelos turistas.
Nos últimos tempos, isso começou a mudar. Companhias aéreas de baixo custo passaram a voar do continente europeu para diferentes ilhas por uns minguados euros, o que multiplicou as ofertas de transporte e provocou uma queda geral nas tarifas, inclusive das companhias tradicionais que dominavam a rota, a TAP (de Portugal) e a SATA (estatal açoriana).
Não demorou para os Açores ficarem sob os holofotes. O que antes era um segredo bem guardado passou a correr de boca em boca. Meses atrás, por exemplo, o Globo Repórter dedicou uma hora inteira às exuberâncias do lugar. Agora, a gigante dos livros de viagem Lonely Planet, que nas 570 páginas de seu guia de Portugal não tem uma única linha sobre as ilhas, decretou que os Açores são um dos 10 grandes destinos globais a visitar em 2017.
Quanto a mim, aproveitei a mudança no cenário quando ela se anunciou, apanhei mulher e filho e fiz o caminho inverso ao percorrido por minha mãe meio século atrás. Por alguns dias, rodando pela Ilha de São Miguel, surpreendi-me com a emoção de parentes açorianos para quem a perda de uma parte da família para as lonjuras do Brasil era ainda uma ferida mal fechada. Também descobri que a terra de conto de fadas que embalou minha infância, nos relatos de minha mãe, era mesmo mágica. Mas não tinha nada de fantasia.
Logo percebi que minha avó havia sido uma figura popular na freguesia de São Brás, a pequena localidade açoriana de onde veio. Parentes mais jovens, que não chegaram a conhecê-la, cresceram ouvindo falar dela e de suas histórias. Um dos responsáveis por manter essa memória viva era o irmão, que permanecera na ilha. Durante décadas, ele repetia aos filhos que seu maior sonho era viajar a Porto Alegre para rever a irmã, ao menos uma vez. Não foi possível. Os dois morreram sem nunca se reencontrar.
Algo parecido marca as relações entre gaúchos e açorianos. Os primeiros povoadores do Estado vieram do arquipélago português e moldaram a nossa história (há um capítulo de Casa-Grande & Senzala em que Gilberto Freyre supõe que as peculiaridades de gaúchos e catarinenses, na comparação com os demais brasileiros, poderiam ser explicadas pelo tipo diferente de português que colonizou o Sul, o ilhéu dos Açores), mas depois seguiram caminhos separados, sem quase nenhum contato. Felizmente, nesse caso um reencontro é possível.
Em uma viagem às ilhas, qualquer gaúcho vai se rever em muito coisa no meio da Atlântico, a começar pela semelhança que o desenho e a arquitetura das cidades açorianas têm com as povoações mais antigas do Estado. Também a cultura, a linguagem, a culinária, as festas e a religiosidade têm similaridades marcantes.
Mas quando se trata da paisagem, deve-se reconhecer que não há qualquer parecença. A amplidão das planícies e dos planaltos gaúchos é substituída, nos Açores, por uma geografia dramática, selvagem e mutante, que transformou o arquipélago em um dos mais cobiçados destinos de natureza e aventura do planeta. É a parte do mundo onde se vê que a Terra está viva e em fúria. Crepita em rachaduras no solo, por onde se escapam água fervente, vapores e um forte odor de enxofre. Dizem que é pelos Açores que o planeta respira – embora mais pareça que esteja bufando, enraivecido.
Para explorar esse lado do arquipélago, sugiro alugar um carro. Veja o caso de São Miguel, a maior e mais povoada das ilhas (reúne 130 mil pessoas em território de 65 quilômetros de comprimento e 15 quilômetros de largura máxima).
A partir da base em Ponta Delgada, a capital, uma pessoa motorizada consegue dar em poucas horas uma volta completa na ilha, sempre pelo litoral, cruzando praias, campos floridos, pastos apinhados, falésias, angras, gêiseres, picos, cavernas, lagoas, pequenos portos e uma sucessão de vilarejos pitorescos. Só há que ter cuidado com os bandos de vacas que de tempos em tempos interrompem as estradas com sua ruminante lentidão.
Ter um automóvel também é fundamental para percorrer o interior da ilha, subindo até o topo de vulcões ou buscando o mirante perfeito para contemplar as crateras adormecidas sob lagos de águas verdes ou azuis – uma placidez em franco contraste com a trepidação subterrânea que, um dia, numa erupção, poderá colocar tudo pelos ares.
O carro só não terá serventia, claro, para explorar o mar. Nesse caso, há pelo menos duas atrações que devem ser aproveitadas de barco. Uma delas é conhecer o Ilhéu de Vila Franca, uma formação que se ergue do oceano a 500 metros da orla de São Miguel. Na verdade um cone vulcânico, a ilhota tem um centro circular onde a água do mar penetra, criando uma piscina natural protegida.
A outra pedida, que atrai cada vez mais estrangeiros, é contratar um passeio para apreciar a fauna marinha. O entorno da ilha está repleto de baleias e golfinhos, facilmente observáveis. Há empresas que oferecem pacotes com os dois programas em um único dia.
O tempo é uma atração à parte. Às vezes os gaúchos têm a impressão de enfrentar as quatro estações em um único dia, mas isso é porque não conhecem os Açores. No arquipélago, é como se as condições climáticas mudassem em fast forward. Num minuto, as nuvens negras dominam e a chuva cai sem piedade. No minuto seguinte, o sol brilha em um céu imaculadamente azul.
Por isso, não desista se estiver no topo de alguma montanha e uma cerrada neblina impedir a vista de vales, lagoas, pastos e crateras vulcânicas lá embaixo. Tenha um pouco de paciência. É questão de minutos para que se descortine diante de si o mais espetacular dos panoramas.