Recém lançado pela Netflix, onde ocupa o top 1 nesta terça-feira (14), O Assassino (The Killer, 2023), de David Fincher, é um filme com pelo menos três camadas. Pena que sobressai a mais corriqueira.
O 12º longa-metragem do estadunidense de 61 anos indicado ao Oscar de melhor direção por O Curioso Caso de Benjamin Button (2008), A Rede Social (2010) e Mank (2020) retoma uma marca das obras que lhe deram fama. Como em Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995) — aliás, quase três décadas depois, Fincher refaz parceria com o roteirista Andrew Kevin Walker — e Zodíaco (2007), o cineasta está às voltas com um metódico assassino serial. Uma diferença fundamental é que aqui o personagem não escolhe suas vítimas: essas são escolhidas por quem contrata os serviços do matador profissional interpretado por Michael Fassbender, concorrente ao Oscar de coadjuvante por 12 Anos de Escravidão (2013) e ao de melhor ator por Steve Jobs (2015), em seu primeiro filme lançado desde X-Men: Fênix Negra (2019) — de lá para cá, o irlandês de 46 anos nascido na Alemanha dedicou-se à carreira de piloto de automobilismo.
Surgido na série francesa de histórias em quadrinhos Le Tueur, escrita por Matz (pseudônimo de Alexis Nolent), desenhada por Luc Jacamon e com 13 álbuns publicados desde 1998, esse personagem sem nome permite a O Assassino fazer duas reflexões interessantíssimas. Ambas tomam corpo na sequência de abertura, 20 e poucos minutos de pura excitação — ainda que ou justamente porque quase nada acontece.
Na companhia do diretor de fotografia Erik Messerschmidt (ganhador do Oscar por Mank), do editor Kirk Baxter (oscarizado por A Rede Social e Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres, outro filme do cineasta) e dos músicos Atticus Ross e Trent Reznor (dupla premiada pela Academia de Hollywood por A Rede Social), David Fincher coloca o espectador em uma dupla condição de voyeur. Enquanto o protagonista, da janela de um prédio comercial, observa a movimentação no edifício de luxo do outro lado da rua, à espera de seu alvo (em um jogo visual que remete ao clássico Janela Indiscreta, lançado em 1954 por Alfred Hitchcock, mestre do voyeurismo cinematográfico), nós nos tornamos testemunhas (ou cúmplices?) do assassino, um personagem que, por sua vez, é assumidamente inspirado no matador de aluguel encarnado por Alain Delon no filme policial francês O Samurai (1967), de Jean-Pierre Melville — a gabardine bege e o chapéu do figurino de Fassbender evidenciam a aproximação, e não à toa a história começa em Paris.
A narração em off nos deixa ainda mais íntimos do protagonista de O Assassino: estamos dentro de sua cabeça durante sua preparação minuciosa e seus rituais de concentração. De cara ele avisa, ao passo que a câmera de Messerschmidt vasculha vagarosamente o cenário elaborado por Donald Graham Burt, vencedor do Oscar por O Curioso Caso de Benjamin Button e por Mank: "É impressionante como pode ser fisicamente exaustivo não fazer nada. Se você é incapaz de suportar o tédio, esse trabalho não é para você".
The Smiths na trilha sonora
O discurso sardônico é complementado, mas também confrontado pelas músicas que o personagem escuta em seus fones de ouvido. Fincher selecionou 11 canções da banda britânica The Smiths, uma das mais icônicas e reverenciadas dos anos 1980. Nas palavras do cineasta, sua mixtape funciona como uma janela para entendermos quem é esse sujeito que que fez da morte o seu ganha-vida. Fincher jamais cede à tentação de resgatar suas raízes como realizador de videoclipes (assinou os antológicos Vogue, de Madonna, e Freedom '90, de George Michael, por exemplo). Sucessivamente, a trilha sonora é quebrada pelos monólogos interiores. Mas os trechos que ouvimos são suficientes para contradizer o niilismo do protagonista. Se ele diz que "O ceticismo é frequentemente confundido com o cinismo. A maioria das pessoas se recusa a acreditar que a vida após a morte não passa de um vazio frio e infinito. Mas eu aceito isso, junto com a liberdade que vem ao reconhecer essa verdade", se ele diz que é eficiente porque não dá a mínima aos outros, os versos de How Soon Is Now? suplicam: "Eu sou humano e preciso ser amado / Assim como todo mundo precisa". A letra de Well I Wonder implora: "Por favor, me mantenha em seus pensamentos / Por favor, me mantenha em seus pensamentos". E o título de Heaven Knows I'm Miserable Now é autoexplicativo: o céu sabe que estou miserável agora.
Nesses 20 e pouco minutos em que se apresenta ao público, o protagonista pode ser encarado como um duplo reflexo. Por um lado, alude à figura do diretor de um filme, por causa de seu cuidado com todos os elementos envolvidos em um assassinato. Isso vai desde o manejo da cenografia à espera pela hora certa para apontar a câmera (em inglês, o trocadilho fica mais saboroso, pois shoot significa tanto atirar quanto filmar), passando pelos trabalhos de edição e efeitos visuais, na pós-produção: cortar, ou seja, descartar pistas, e eliminar os fios que possam dar materialidade ao que deve parecer invisível. E o perfeccionismo do personagem de Fassbender espelha o do próprio David Fincher, célebre por exigir múltiplas tomadas da mesma cena: foram 99 para a sequência de abertura de A Rede Social.
Por outro lado, O Assassino também faz uma série de comentários sobre a precarização do trabalho. O personagem de Fassbender atua sozinho, mas na verdade é um empregado, com gestores e valores a seguir. As várias identidades que ele assume ao longo do filme ecoam a impessoalidade de ambientes corporativos. Aliás, as frases que o protagonista repete a si mesmo como um mantra poderiam ser ouvidas em cursos e treinamentos empresariais: "Atenha-se ao plano", "Antecipe, não improvise", "Os verdadeiros problemas surgem nos dias, horas e minutos que antecedem a tarefa, e nos minutos, horas e dias seguintes. Tudo se resume à preparação. Atenção aos detalhes. Redundâncias. Redundâncias. E redundâncias". Como escreveu o crítico Marcelo Hessel no site Omelete, "o perfeccionismo não é uma excentricidade desprovida de contexto, e sim um sintoma de uma excitação neoliberal pela produtividade". E quando essa produtividade é interrompida, quando o trabalhador comete um erro, bem, de nada servirá todo o seu histórico de acertos.
Sophie Charlotte no elenco
Talvez o que vem a seguir seja um spoiler, portanto, registre-se o alerta.
O mote de O Assassino é: o que acontece quando um matador profissional erra o alvo? E o pior: mata uma pessoa inocente?
Embora seja extremamente bem executado por David Fincher e sua equipe técnica, e apesar da ótima e estoica atuação de Michael Fassbender, a partir desse ponto O Assassino se torna um filme bastante convencional. (Lembrete sobre possíveis spoilers.) O protagonista não chega a enfrentar uma crise de consciência e vira ele próprio um alvo na enésima e nada surpreendente trama de vingança, que inclui as brevíssimas participações da brasileira Sophie Charlotte (como um clichê misógino: a mulher que é vítima de violência para motivar a jornada do "herói") e da britânica Tilda Swinton (sempre um deleite), uma cena sensacional de pancadaria e uma escolha muito óbvia no repertório dos Smiths para embalar a cena final.