A RBS TV exibe à 0h15min deste domingo (22), no Supercine, um filmaço de terror. Nas três vezes em que vi O Homem Invisível (The Invisible Man, 2020), fechei os olhos para os furos de roteiro. Prefiro ficar admirando a transformação do personagem. Mas não estou falando dos efeitos visuais. Eu me refiro à transformação sofrida pela própria história.
O Homem Invisível é um dos filhos eternos paridos pela literatura fantástica do século 19 e depois vitaminados pelo cinema dos anos 1930. Todos permanecem entre nós porque espelham dilemas, pesadelos e pulsões que atravessam gerações. Frankenstein nos alerta sobre os perigos de brincar de Deus — o debate sobre limites da ciência segue atual em tempos de edição do DNA. O Médico e o Monstro sintetiza a dualidade humana — todos temos um lado obscuro, não? Drácula não oferece apenas uma metáfora sobre a insaciabilidade do desejo sexual — os vampiros que sugam sangue também podem ser lidos como a elite que explora os trabalhadores. O Homem Invisível também pode, com o perdão da piada infame, ser visto de várias maneiras.
Aliás, essa é uma característica das histórias de terror: elas se vestem conforme o figurino da época. Peguem os zumbis, por exemplo. Já foram usados em alegorias sobre as minorias vítimas de intolerância e preconceito; em críticas ao consumismo e ao militarismo; como símbolos da desigualdade social, tanto no âmbito das cidades quanto na geopolítica mundial; como produto de nosso descaso com o natureza ou com a saúde; e como consequência das circunstâncias (políticas, econômicas, sanitárias etc.) que nos tornam irreconhecíveis e irreconciliáveis uns aos outros.
Criado em 1897 pelo escritor H.G. Wells, o Homem Invisível já nasceu lidando com temas grandes: ambição, solidão, incompreensão. Nos seus quase 125 anos de vida, ganhou abordagens em tom de comédia, mas no fundo é um personagem sinistro ou triste, um veículo para histórias sobre a intoxicação pelo poder e os riscos trazidos pela impunidade, sobre como a sociedade pode tornar invisíveis algumas pessoas.
Terceiro longa-metragem dirigido pelo australiano Leigh Whannell (após Sobrenatural: A Origem, de 2015, e de Upgrade: Atualização, de 2018), O Homem Invisível atualiza e muda a perspectiva da trama. O foco não está no cientista que descobre a fórmula da invisibilidade nem nos dilemas éticos e morais. E, em vez de um, temos uma protagonista. Mas não se trata de uma versão feminina, como a comédia de 1940 A Mulher Invisível. Whannell transforma seu personagem título em um símbolo dos relacionamentos tóxicos.
O filme adota o olhar da vítima, Cecilia, a esposa do gênio da óptica Adrian Griffin (referência ao Griffin do romance original). Nos primeiros minutos, assistimos a sua fuga, na calada da noite, da casa envidraçada e cheia de dispositivos de segurança em um penhasco de San Francisco, na Califórnia. Com um simples, mas engenhoso movimento de câmera, o diretor estabelece o terror que acompanhará sua protagonista. Primeiro, seguimos o ponto de vista da mulher, perscrutando nos ambientes da residência sinais de que o marido possa ter acordado. Quando a câmera faz o trajeto de volta, o ponto de vista já não é mais o dela.
Cecilia é interpretada por uma atriz talhada para o papel: Elisabeth Moss. A estadunidense exibe no currículo um punhado de personagens que precisam lutar contra o abuso masculino e a anulação feminina — desde a Peggy Olson da série Mad Men, sobre o mundo da publicidade na Nova York dos anos 1960, até a Offred da adaptação do romance distópico O Conto da Aia, The Handmaid's Tale, passando pela detetive Robin do seriado Top of the Lake. Em O Homem Invisível, Moss usa essa bagagem a seu favor, mas revertendo nossa expectativa: ao invés de forte, destemida ou mesmo estoica, surge fragilizada. Tem medo de fazer coisas absolutamente simples, como caminhar alguns passos até a caixa de correio do refúgio onde se instalou, a casa de um amigo da irmã, o policial James (Aldis Hodge, de Uma Noite em Miami e Adão Negro). Qualquer vulto lhe parece Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen, de A Maldição da Residência Hill) — um homem invisível pode estar em qualquer lugar.
E um homem abusivo está em todo lugar. Mesmo depois de morto, segue projetando sua sombra.
— Ele controlava o que eu vestia, o que eu comia, como eu caminhava, até o que eu pensava —desabafa Cecilia após ser informada da morte do ex.
Quando coisas estranhas começam a acontecer, ela passa a desconfiar de que Adrian não apenas está vivo — dotado da invisibilidade, voltou a atormentá-la, a ameaçá-la, a agredi-la, a sabotá-la. A ficção, então, reflete situações tristemente comuns da vida real: Cecilia grita, mas ninguém acredita nela. Sua sanidade é posta em xeque — pela voz silenciada da personagem, muitas mulheres poderão reconhecer a prática do gaslighting, uma forma de manipulação psicológica tão sofisticada, que é difícil de denunciar:
— É isso o que ele faz: ele me faz sentir que eu sou a louca da relação!
Se e como Cecilia sairá dessa arapuca é algo que cabe ao espectador descobrir. O que dá para dizer, sem risco de algum spoiler mais grave, é que, a despeito de um ato final não muito satisfatório em relação à verossimilhança, Leigh Whannell constrói a tensão com uma sutileza insuspeita — considerando que ele foi um dos roteiristas da sanguinolenta cinessérie Jogos Mortais. Haverá violência em O Homem Invisível, mas o que marca o filme é a movimentação cadenciada, porém desnorteante, da câmera, o casamento das cores frias da direção de fotografia com uma montagem elegante, que dá tempo e espaço para que o espectador perceba o perigo em cena (como o vapor da respiração em uma noite fria). Os efeitos visuais, bem eficientes, são guardados para os momentos adequados, sem exageros. E um dos grandes acertos é a trilha sonora composta por Benjamin Wallfisch.
As cordas, nervosas, evocam os filmes de Alfred Hitchcock (1889-1980). A aproximação com o mestre do suspense não é aleatória: Whannell retrabalha alguns temas e elementos hitchcockianos. Há até um MacGuffin, o importante objeto insignificante, no caso, a tecnologia por trás da invisibilidade (que, no fundo, é irrelevante para o andamento da trama: poderia ser uma pílula ou um raio, por exemplo). Seu O Homem Invisível é cheio de silêncios — os enquadramentos e os cortes bastam para provocar emoção. Sua protagonista tem a vida desestruturada a ponto de precisar provar que não está louca (ou que não é culpada). Seu vilão tem a cumplicidade do público, ciente de informações que a mocinha da trama desconhece. Nesse mesmo sentido, Whannell também apela para nosso voyeurismo, marca identitária não só de Hitchcock (vide Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, Psicose...), mas do próprio espectador de um filme.