Antes dos irmãos Lumière ou de Thomas Edison, o francês Louis Le Prince já filmava imagens em movimento, recorda a história em quadrinhos O Filme Perdido, produzida pelos paulistanos Cesar Gananian (direção e roteiro) e Chico França (arte) e publicada pela Quadrinhos na Cia. (312 páginas, R$ 139,90). Em setembro de 1890, então com 49 anos recém completados, ele se preparava para ir aos Estados Unidos apresentar sua mais nova invenção: o cinematógrafo. No dia 16 daquele mês, embarcou num trem entre as cidades de Dijon e Paris. Nunca mais foi visto.
O que teria acontecido com Le Prince? Entrou em crise e fugiu? Suicidou-se? Foi vítima de um crime ou até de um atentado, em meio à Guerra das Patentes? Sucumbiu ao sobrenatural?
O enigmático desaparecimento de Le Prince é o ponto de partida para a viagem pela história do cinema empreendida por Gananian, que em 2022 venceu a categoria de melhor documentário em curta-metragem do Festival É Tudo Verdade com Contos de um Livro Sagrado, dirigido em parceria com Cassiana Der Haroutiounian, e França, autor de Livro, Isto: Cartuns (2014), coletânea dedicada ao mundo da literatura. Em uma jornada fascinante, embora desafiadora e por vezes difícil de compreender à primeira vista, eles passeiam por 21 movimentos cinematográficos, em “uma grande sinfonia dedicada a uma ideia, uma súplica apaixonada em favor da memória”, como define uma personagem.
Cada capítulo traz no título o nome de um filme que jamais existiu, assinado por um diretor também fictício. O de abertura, por exemplo, A Música da Luz (1920), do francês Eugene Bonaventure, tem as características do período: é em preto e branco e “sem som”, ou seja, os textos aparecem em cartazes inseridos entre as cenas. O segundo dá um salto cronológico - não na trama, mas no estilo. Paranoia (1949), do estadunidense Charles Clay, cita o noir e Hitchcock. Na sequência, Carnaval (2000), de Lee Sang, celebra a pujante cinematografia da Coreia do Sul e flagra o protagonista sofrendo de três males simultaneamente: “a ansiedade, que é o excesso de futuro; a depressão, que é o excesso de passado; e o estresse, que é o excesso de presente”.
Surto (1970), de Sebastião Prata, representa o cinema marginal brasileiro de diretores como Rogério Sganzerla, com Grande Otelo aconselhando Le Prince e Zé do Caixão anunciando: “Almas ruins, vim vos buscar para o castigo eterno”. Esses personagens nacionais não estão claramente identificados, porque Gananian e França querem deixar o leitor encontrar as referências. Algumas são mais fáceis de pescar: o diretor de Surto vem do nome de batismo de Grande Otelo, Sebastião Bernardes de Souza Prata, e o autor de O Rolo Perdido (1992), Werner Wenders, alude a dois grandes cineastas da Alemanha, Werner Herzog e Wim Wenders. Outras demandam mais conhecimento: o filme Confiança (1990), de Zarifeh Farrokhzad, emula os planos estáticos e a metalinguagem de diretores iranianos como Abbas Kiarostami. Os rascunhos a lápis nas páginas brancas e o letreiramento rústico de Caronte (1948), de Humberto Durante, remetem ao neorrealismo italiano, com atores não profissionais e baixo orçamento.
Para além dos diferentes estilos e dos exercícios metalinguísticos, há elipses, parábolas, passagens oníricas ou delirantes — que talvez só façam sentido mais para o final, em um documentário. Em entrevista por e-mail (confira outras perguntas e respostas logo abaixo), Cesar Gananian justifica o desafio para o leitor:
— Seria injusto com a história do cinema se a gente só tivesse escolhido cinemas de narrativa clássica, linear. As possibilidades da linguagem cinematográfica são infinitas. E eu sempre acreditei que o desenho maravilhoso do Chico França seria sedutor suficiente para manter o leitor intrigado, curioso com cada página que virasse.
"Tem muita coisa escondida que é legal deixar o leitor descobrir"
Por que vocês resolveram contar a história de Louis Le Prince? Quais foram os elementos que mais despertaram o interesse? E como vocês chegaram à ideia da HQ O Filme Perdido, que faz um passeio por diferentes escolas, períodos e estilos cinematográficos?
Cesar Gananian: Lendo A Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, lembro que ele dizia que talvez a humanidade tenha escrito apenas um único livro, que seria a soma de tudo que já foi escrito. Isso me tocou, e me fez relacionar com o cinema: um único filme feito pela humanidade. Aí nasceu a ideia de criar um filme que teria sido rodado ao longo do século 20 por cineastas fictícios de diferentes épocas e lugares, como uma colcha de retalhos que trouxesse movimentos, estilos e formas diferentes de fazer cinema para cada segmento. Um filme feito ao longo de cem anos. Eu amei essa ideia e comecei a pesquisar sobre o que seria esse filme. Depois de um tempo, percebi que a resposta estaria no primeiro cineasta que teria inaugurado essa obra centenária, e fui atrás dos pioneiros do cinema para ter alguma luz. Foi ai que surgiu Louis Le Prince. Le Prince foi o inventor pioneiro da câmera cinematográfica. Desenvolveu um cinematógrafo anos antes da dita invenção oficial do cinema, mas desapareceu numa viagem de trem, quando estava prestes a patentear sua invenção em 1890. Era a época da Guerra das Patentes, e a família de Le Prince acreditava na possibilidade dele ter sido assassinado por agentes do Thomas Edison, algo nunca confirmado também. Todo esse mistério me fez ter a ideia de criar uma fantasia, onde o diário de Le Prince teria sido encontrado e cineastas criariam um filme coletivo, recriando os últimos passos de Le Prince e ao mesmo tempo trazendo os sonhos e pesadelos que sua invenção trouxe ao mundo. Talvez Le Prince fosse uma espécie de metáfora de todos aqueles artistas e inventores independentes, livres em sua busca por algo novo e revolucionário.
Como foi o processo de escolha das escolas, dos períodos e dos estilos cinematográficos representados? Como definiram os nomes dos diretores e dos filmes? E por que a jornada não é na ordem cronológica desses movimentos do cinema?
Gananian: São 21 movimentos cinematográficos. Alguns bastante conhecidos, como o cinema noir, o novo cinema coreano. Já outros são tesouros escondidos do grande público, como as animações tchecas ou a nouvelle vague japonesa. Eu passei um ano montando esse quebra-cabeça. Busquei movimentos que ousaram na linguagem, que criaram novas maneiras de filmar, pensar… Mas que também funcionassem na narrativa, que combinassem com o que Le Prince tivesse sentindo naquele momento ou com a situação que ele estivesse vivendo. O nome dos diretores tem muito a ver com os cinemas que homenageamos. Por exemplo, no capítulo Visões do Abismo, o nome do diretor fictício é Alexander Borg, um sobrenome com que o cineasta Ingmar Bergman frequentemente batizava seus personagens. Mas tem muita coisa escondida dentro do livro que a gente acha legal deixar as pessoas descobrirem. Sobre a jornada não ser cronológica, foi algo libertador. Imaginei que cada cineasta teria escolhido o trecho do diário de Le Prince que mais lhe inspirasse. Isso permitiu uma dinâmica mais legal, de poder passear pelos movimentos cinematográficos de uma maneira mais surpreendente, menos didática. Imagine se a gente seguisse a cronologia do cinema: o quadrinho só teria páginas coloridos lá para a metade do livro, ficaria duro, lento demais.
Quais foram os desafios na hora de transpor para os quadrinhos as características de um diretor ou de um estilo?
Gananian: Para mim, essa era a grande brincadeira. Como traduzir uma linguagem de um meio para outro. No quadrinho, temos elementos como a diagramação dos quadros, o tipo de traço, a escolha de fontes nos balões, o tipo de material utilizado. A partir disso, eu e o Chico fazíamos uma pesquisa profunda tanto de filmes como das artes gráficas de cada período. Por exemplo, uma diagramação mais rígida e organizada de quadros poderiam trazer uma espécie de austeridade hitchcockiana no capítulo noir. Ou uma pincelada solta e ágil de aquarela poderia trazer o espirito do novo cinema coreano.
Chico França: Antes de qualquer coisa vinha a pesquisa. A principal tarefa era mergulhar nos filmes, o que era muito prazeroso. Depois, trocar impressões com o Cesar e também absorver toda a bagagem de informações e conceitos que ele me trazia. Tudo isso para tentar captar o espírito de cada movimento cinematográfico. Uma coisa que ajudou muito foi me apropriar dos próprios termos do cinema para pensar a composição gráfica da história. Por exemplo, nas decupagens do roteiro (sim, definíamos juntos quadro a quadro), escolhíamos os recortes de cena e as angulações de câmera. O segundo capítulo, o noir, foi concebido pensando em longos planos-sequência. Tinha que imaginar uma grua suspendendo uma câmera para obter um ângulo (risos). E, junto a isso, tinha a escolha do material e o tipo de figurativismo que eu iria adotar (mais realista ou mais caricato...). Coisas muito intuitivas no começo foram revelando fazer muito sentido com o tempo.
Cada capítulo tem sua própria identidade visual: como o Chico França conseguiu variar tanto a arte? E quanto tempo levou para o filme perdido ficar pronto?
França: Essa era a loucura do trabalho, pois necessariamente exigia a diversidade visual. Lembro que, quando o Cesar me convidou, questionei se não seria o caso de chamar outros artistas, mas ele primava justamente por essa unidade dentro da diversidade, o que só um único artista poderia proporcionar. Não sei como ele confiou que eu fosse dar conta de tanto estilo diferente (risos), pois fiquei, sim, um pouco apreensivo com o tamanho do desafio. Mas com o tempo fui entendendo meus limites e também aprendi muito com o processo. Ao mesmo tempo, o próprio cinema me impelia à variedade de técnicas e materiais, a fim de traduzir de maneira particular o espírito de cada movimento. Me nutri também de referências das HQs, das artes plásticas e, às vezes, até da música. Era comum escolher, para as horas de trabalho, uma trilha sonora que tivesse a ver com o capítulo em que eu estava mergulhado. Era um modo de me transportar para a atmosfera daquele lugar, daqueles personagens. Interessante pensar essa interseccionalidade das artes (cinema, desenho, música...) que estava implicada no processo, só que de fora despretensiosa. Só agora, com certo distanciamento, consigo perceber melhor isso. E, principalmente, muita troca com o Cesar, que me trazia estímulos e sempre era muito sincero com suas impressões sobre os desenhos. O processo todo levou uns 10 anos. Nos cinco primeiros anos, o Cesar trabalhou o roteiro. Só depois entrei no projeto e, então, foram mais cinco anos de desenho.
Existe um arquivo de referências para cada capítulo? É algo compartilhável, a exemplo de alguns trabalhos do Alan Moore?
Gananian: Muito legal você citar o Alan Moore. Para mim, ele é o maior escritor vivo que temos. Li quase tudo que ele escreveu, e esse lance de misturar linguagens vem muito por inspiração nos trabalhos dele. Neste mês novembro, vamos lançar uma série online semanal de capítulos curtos chamada Em Busca do Filme Perdido. Nesses vídeos, vamos contar um pouco do universo referencial do livro. Estarão disponíveis no meu perfil do Instagram (@cesargananian).