Se na primeira coluna sobre Doutor Estranho no Multiverso da Loucura eu evitei os spoilers, desta vez aviso de cara que o texto a seguir trará informações que podem prejudicar a experiência de quem ainda não foi ao cinema para ver o 28º filme do Universo Cinematográfico Marvel.
Se bem que, a esta altura do campeonato, com a aventura dirigida por Sam Raimi e estrelada por Benedict Cumberbatch já beirando os US$ 700 milhões nas bilheterias mundiais (tende a ultrapassar os US$ 767,2 milhões de Batman e tornar-se o líder de 2022), muita gente já deve saber do papel desempenhado pela atriz Elizabeth Olsen.
Sim, é o de Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate, criada nos quadrinhos pelo roteirista Stan Lee e pelo desenhista Jack Kirby em 1964, primeiro como uma relutante vilã dos X-Men, mas logo depois erguida ao panteão dos super-heróis, integrando a equipe dos Vingadores; e já encarnada por Olsen nos filmes Vingadores: Era de Ultron (2015), Capitão América: Guerra Civil (2016), Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Vingadores: Ultimato (2019) e na minissérie WandaVision (2021).
Mas — e aqui vai o derradeiro aviso sobre o spoiler — além de repetir sua personagem, a atriz interpreta a grande antagonista de Stephen Strange. Simplificando, a Feiticeira Escarlate é a vilã de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura.
No filme, ela quer se apossar dos poderes da adolescente America Chavez (Xochitl Gomez), o de atravessar as realidades paralelas, para viver em um mundo onde são reais os filhos gêmeos, Billy e Tommy, nascidos somente na fantasia de Wanda, que — como visto em WandaVision — reinventou na cidadezinha de Westview um idílio familiar para lidar com a morte do amado Visão (ocorrida em Guerra Infinita).
Há quem diga que Multiverso da Loucura apaga toda a jornada de transformação pela qual a heroína passou na série do Disney+; há quem diga que apenas repete essa jornada de transformação. Eu entendo que o filme enfatiza o quão doloroso e sujeito a recaídas é um processo de luto.
Mas talvez a crítica mais comum seja a de que o roteirista Michael Waldron teria recorrido a um velho clichê de Hollywood: o da "mulher louca e poderosa". Desde Uma Rua Chamada Pecado (1951) a Noite Passada em Soho (2020), passando por Atração Fatal (1987) e X-Men: Fênix Negra (2019), não faltam filmes nos quais personagens femininas abaladas por um trauma ou uma grande decepção perdem o controle de suas emoções e acabam tornando-se uma ameaça.
Às vezes, contudo, existe um outro contexto. Um outro olhar. (Outro aviso de spoiler, agora sobre Noite Passada em Soho.) Quando eu condenei a transformação de uma vítima de violência sexual em uma assassina serial, uma leitora discordou totalmente: "Por que as personagens femininas não podem ser escrotas, vilãs, maldosas?". Daria para acrescentar à reflexão dela: por que esse território hollywoodiano precisa ser predominantemente masculino (vide Michael Myers, Hannibal Lecter, Coringa)?
E, no caso das aventuras cinematográficas da Marvel, vale apontar que, depois de Thanos, Caveira Vermelha, Loki, Duende Verde, Killmonger, Ultron, Ego e Soldado Invernal, entre outros, a Feiticeira Escarlate do Multiverso da Loucura é apenas a segunda vilã digna de nota — a primeira foi a Hela vivida por Cate Blanchett em Thor: Ragnarok (2017). Na outra ponta, a dos mocinhos, a balança ainda pesa bastante para o lado dos homens, mas já há um batalhão feminino: Capitã Marvel, Viúva Negra, a própria America Chavez, Gamora, Shuri, Kate Bishop, Valquíria... E em breve teremos Jane Foster empunhando o martelo de Thor (sem falar das séries protagonizadas por Kamala Khan, a Ms. Marvel, e Jennifer Walters, a Mulher-Hulk). Então, a vilanização de Wanda talvez não seja um problema do filme do Doutor Estranho, mas um ponto forte — um exemplo de diversidade, me atrevo a dizer.