Antes de falar qualquer coisa sobre Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, reforço o aviso dado no título da coluna: não haverá spoilers sobre o 28º filme do Universo Cinematográfico Marvel, que entra em cartaz nesta quinta-feira em centenas de salas do Brasil. Aliás, espero que você tenha evitado os trailers — depois de assistir à nova aventura do super-herói místico interpretado por Benedict Cumberbatch, descobri que, como de hábito, as imagens e as vozes revelam demais sobre o retorno do cineasta Sam Raimi (o realizador da primeira trilogia do Homem-Aranha), que estava há quase 10 anos sem dirigir um longa-metragem. Quem se expôs certamente não experimentará o mesmo grau de surpresa e excitação que tivemos eu e uma galera em uma das sessões de pré-estreia realizadas na noite de quarta (4). Houve gritos e palmas ecoando nas poltronas do Espaço Bourbon Country.
A primeira coisa a dizer é que, ao contrário do que andam falando, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness, 2022) não requer um vasto conhecimento da mitologia em torno do personagem criado em 1963 pelo roteirista Stan Lee e pelo desenhista Steve Ditko, um duplo sintetizador da magia Marvel — tanto é um mago por excelência quanto reúne, em sua origem, vários dos elementos característicos da editora estadunidense de quadrinhos de super-herói: trata-se de um homem comum, o cirurgião Stephen Strange, que, ao adquirir superpoderes, encara um rito de passagem, em uma história de redenção, de segunda chance e de alerta sobre os perigos da arrogância. Também não é preciso saber de cor e salteado os eventos do chamado MCU — a sigla em inglês do Universo Cinematográfico Marvel, que envolve os filmes do cinema e também as séries da plataforma de streaming Disney+. Evidentemente, o espectador que fez os temas de casa propostos pelo meu colega Carlos Redel — ver Doutor Estranho (2016), Vingadores: Guerra Infinita (2018), Vingadores: Ultimato (2019), WandaVision (2021), Loki (2021), Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021) e alguns episódios da animação What If...? (2021) — estará mais preparado para as duas horas e seis minutos de prova (contando as duas cenas pós-créditos, uma delas irônica como a de Batman). Mas dá para chegar sem muito estudo, porque pouco a pouco o roteiro escrito por Michael Waldron, o mesmo da série Loki, vai nos ambientando sobre o conceito de multiverso — ou seja, a existência de universos paralelos —, recapitulando acontecimentos das histórias anteriores e apresentando (ou reapresentando) personagens. A começar por America Chavez, super-heroína adolescente encarnada por Xochitl Gomez (a Dawn Schafer do fofo seriado O Clube das Babás). Como seu sobrenome sugere, ela tem o poder de abrir portas dimensionais e viajar entre as diferentes realidades, o que a coloca em perigo.
A segunda coisa a dizer é que, se por um lado dá para ir sem medo de não compreender a trama, por outro medo é um sentimento que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura pode despertar no público. Este é o filme do MCU mais próximo do terror, gênero no qual o estadunidense Sam Raimi, 62 anos, despontou, assinando Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio (1981), que virou uma franquia. O diretor revisita seu passado, tendo como principais parceiros o diretor de fotografia John Mathieson (indicado ao Oscar por Gladiador e por O Fantasma da Ópera), os editores Bob Murawski (oscarizado por Guerra ao Terror) e Tia Nolan, o compositor Danny Elfman (que disputou quatro vezes a estatueta dourada) e inclusive o ator Bruce Campbell, em uma ponta divertida. Veremos monstros, demônios e até um zumbi, além de livros malditos e "dominantes oníricos".
Bach e Beethoven
A terceira coisa a dizer é que, depois de três filmes da Marvel que ficaram devendo em efeitos visuais, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é um espetáculo. Esqueçam as escuras cenas de ação de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis e de Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, esqueçam a saliente computação gráfica de Eternos. Agora, muitos dos combates ocorrem à luz do dia, com enquadramentos e movimentos de câmera inusitados, e a magia parece bastante real. Pelo menos duas sequências merecem destaque: o vertiginoso passeio psicodélico do protagonista e de America por mundos paralelos e a batalha das notas musicais, na qual Elfman emprega os leitmotivs da Toccata e Fuga em Ré Menor, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), e da 5ª Sinfonia, de Ludwig van Beethoven (1770-1827). A combinação de som e imagem é fascinante.
A quarta coisa a dizer, já que mencionamos dois compositores de música clássica, é que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é um dos filmes em que a Marvel mais trabalha temas adultos. O conceito de dimensões alternativas permite abordar luto, culpa e arrependimento — o Doutor Estranho, por exemplo, lamenta escolhas que o fizeram se separar da amada médica Christine Palmer (Rachel McAdams). Quantos de nós já não nos flagramos pensando em como nossas vidas seriam diferentes se tivéssemos dito aquela palavra, dobrado aquela esquina? Nesse sentido, uma personagem fundamental é Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), a Feiticeira Escarlate. Aqui talvez esteja o único spoiler deste texto, mas apenas para quem não viu a minissérie WandaVision. Desolada com a morte do Visão (ocorrida em Vingadores: Guerra Infinita), Wanda reinventou na cidadezinha de Westview um idílio familiar, incluindo os filhos gêmeos, Billy e Tommy. Aferrou-se a uma fantasia, a uma ilusão, para lidar com as dores da tristeza.
A quinta e última coisa a dizer é que Sam Raimi mostra-se um mestre da alquimia. O diretor conseguiu alcançar o estranho equilíbrio entre um filme de terror, com sua ambientação sombria, e um filme da Marvel, com seu tradicional colorido; entre questões e referências que falam alto a um espectador mais maduro e momentos dedicados ao riso ou ao espanto da turma da pipoca. Como visto em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, a ideia de múltiplas linhas temporais lançada em Loki possibilita o resgate de personagens queridos do público. Mas também facilita o surgimento de novos nomes e rostos na elástica galeria do MCU. Doutor Estranho no Multiverso da Loucura escancara a porta para um mundo em constante mutação onde os sonhos dos fãs viram realidade.