No meio dos grandes lançamentos e das grandes bombas, dos títulos estrelados ou dirigidos por nomes fortes de Hollywood, das obras que ganham holofote por serem polêmicas, dos premiados, dos indicados e dos cotados ao Oscar — no meio da enxurrada de filmes oferecidos pelo streaming, às vezes há tesouros escondidos.
A lista para este fim de semana traz 10 títulos recentes (de 2014 para cá) que podem não ter o reconhecimento merecido. Mesmo estando no catálogo de duas das principais plataformas — o Amazon Prime Video e a Netflix. Aliás, vou revelar para vocês: fiz um teste com três colegas de Redação e, da seleção abaixo, nenhum tinha sido assistido por eles.
Eu já vi todos, é claro, e escrevi colunas específicas sobre a maioria. Clique nos links se quiser saber mais.
Tribunal (2014)
O filme do diretor e roteirista indiano Chaitanya Tamhane ganhou no Festival de Veneza a mostra Horizontes, focada em novas tendências, e o troféu Luigi de Laurentis, destinado a estreantes. O jovem cineasta (tem 34 anos) investe na sobriedade formal, com poucos cortes. Gosta de deixar a câmera estática enquanto as coisas vão acontecendo à sua frente, sem se preocupar com o tempo ou com uma suposta inação — é como se fizesse recortes da vida real e ordinária.
Tribunal é sobre o julgamento de um veterano compositor de canções de protesto, Narayan Kamble, interpretado por Vira Sathidar — ele próprio um poeta, músico e ativista em prol das castas inferiores na sociedade indiana, morto em abril de 2021, aos 62 anos, vítima de covid-19. Narayan é acusado de, durante uma apresentação em uma favela, ter incitado o suicídio de um operário encontrado morto no esgoto. Tamhane também acompanha o cotidiano de outros personagens, como a viúva do operário, Sharmila Pawar (papel de Usha Bane), encarnando as condições precárias impostas a muitos trabalhadores mundo afora; o advogado de defesa, Vinay Vora (Vivek Gomber), ainda jovem e em conflito com seus pais: está refletindo, na vida privada, o combate a leis antiquadas e retrógradas, e também à corrupção policial, ao obscurantismo e ao fanatismo (religioso, político, etc.); a promotora pública Nutan (Geetanjali Kulkarni), que no fundo age como uma dona de casa aferrada às tradições, moralista e punitivista; e o juiz Sadavarte (Pradeep Joshi), representando a elite insensível à debilitação da saúde de Narayan por causa dos sucessivos adiamentos no julgamento — o que importa é que estão chegando suas férias de verão. (Netflix)
Contornando a Morte (2018)
Trabalhando em um microcosmo, a diretora Pailin Wedel reflete sobre questões gigantescas. O drama de uma família tailandesa nos convida a pensar sobre ciência e fé, sobre corpo e espírito, sobre amor e o que muitos chamariam de loucura, sobre como lidamos ou não com a perda, com o luto.
Com o título original de Hope Frozen (esperança congelada), o filme se concentra nos esforços do casal de cientistas Sahatorn e Nareerat Naovaratpong para dar sobrevida à filha caçula, Matheryn, também chamada de Einz (amor, em japonês). Aos dois anos, ela foi diagnosticada com um tipo raro de câncer cerebral. Pais de um adolescente batizado como Matrix, Sahatorn e a esposa decidiram, em 2015, tornar Einz a mais jovem pessoa a ser submetida à criogenia — método que mantém o corpo ou o cérebro em um tanque de nitrogênio a quase -200°C —, à espera de que, no futuro, haja uma forma de curar uma doença e, assim, ressuscitar a filha. Prepare-se para uma tremenda surpresa. (Netflix)
Pássaros de Verão (2018)
A sinopse do filme dirigido por Cristina Gallego e Ciro Guerra diz: no início da produção em massa de maconha na Colômbia, uma família de indígenas se envolve numa guerra pelo controle do tráfico de drogas. Mas logo se percebe que Pássaros de Verão vai muito além de uma história policial. Existe uma ambição antropológica: os cineastas reconstituem o encontro fatal dos povos indígenas com a chamada "civilização".
Os principais personagens de Pássaros de Verão são Wayuu já aculturados, mas que preservam uma série de tradições — por exemplo, a de confinar moças como Zaida (Natalia Reyes) durante um ano até que possam ser apresentadas como mulheres à aldeia. É por ela que se apaixonará Rapayet (José Acosta), mas ele não dispõe de recursos para o dote exigido para o casamento: vacas, cabras, colares. Com um amigo negro, Moncho, percebe uma oportunidade de ascensão no emergente mercado das drogas. (Amazon Prime Video)
Atlantique (2019)
O mar é um personagem tão importante quanto a forte protagonista deste filme do Senegal que recebeu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Suas ondas podem prenunciar o infortúnio ou trazer a esperança, sua imensidão simboliza o tamanho de um amor ou a extensão de um sistema opressor para com as mulheres, sua cor inspira a fotografia, com azuis e verdes predominando, seus sons acalmam, hipnotizam, seduzem.
É à beira do Oceano Atlântico que a diretora Mati Diop entrelaça romance, crítica social e generosas pitadas de horror e do cinema fantástico — um casamento feliz entre a realidade quase documental e o realismo mágico. Casamento feliz é o que não aguarda Ada (interpretada por Mame Bineta Sane), prometida ao rico Omar (Babacar Sylla), mas apaixonada pelo pobre Souleiman (Ibrahima Traoré), um dos tantos operários que trabalham para erguer uma torre em Dacar enquanto sonham com a perigosa travessia para a Europa. (Netflix)
Mosul (2019)
Trata-se de um incomum filme de guerra produzido por estadunidenses: o conflito contra o Estado Islâmico, no Oriente Médio, é visto pela perspectiva dos iraquianos. Visto e falado: os atores travam combates e diálogos exclusivamente no idioma árabe. Em uma dessas conversas, vale frisar, critica-se o modus operandi das forças militares dos Estados Unidos, interessadas na destruição dos alvos, mas não na reconstrução de um país.
Mosul é baseado em uma reportagem da revista The New Yorker sobre um batalhão de elite do Iraque, a Swat de Nínive. Roteirista de O Reino (2007) — que é sobre uma equipe dos EUA que se infiltra para destruir uma célula terrorista na Arábia Saudita —, Matthew Michael Carnahan estreia na direção. O ator francês de origem árabe Adam Bessa (visto em Resgate), o iraquiano Suhail Dabbach e o jordaniano Is'haq Elias emprestam carisma e autenticidade aos três principais personagens. Terceira maior cidade do Iraque, a destroçada Mossul foi reconstituída no Marrocos, onde se combinam os talentos do designer de produção Philip Ivey (da trilogia O Senhor dos Anéis), do diretor de arte Marco Trentini (de Falcão Negro em Perigo) e de Mauro Fiore, vencedor do Oscar de melhor fotografia por Avatar. (Netflix)
Laço Materno (2020)
Baseado em um caso real ocorrido em 2014, o filme do japonês Tatsushi Omori tem uma tristeza avassaladora e impregnante. Shuhei (interpretado por Sho Gunji na infância e por Daiken Okudaira na adolescência) é um menino que mora com a mãe, Akiko (Masami Nagasawa, em desempenho ao mesmo tempo cativante e revoltante). Já nas cenas iniciais, percebemos a toxicidade daquela relação. Sim, Akiko é capaz de lamber o joelho esfolado do filho e leva Shuhei para brincar na piscina, mas a ela só importa o próprio prazer. Isso inclui o vício em álcool, em cigarro e em pachinko, um típico jogo eletrônico de azar do Japão. O comportamento errático impede que Akiko mantenha seus empregos, então ela vive pedindo dinheiro emprestado para os pais e para a irmã. Só que sua família já não tem mais paciência para lidar com a ovelha desgarrada.
A situação de Shuhei piora quando Akiko conhece o igualmente inconsequente Ryo (Sadao Abe). Omori é sintético e eficaz na composição das cenas, na comunicação sem palavras, na combinação entre aquilo que vemos e aquilo que ele não mostra. E vai apertando o coração do espectador sem precisar, necessariamente, usar as mãos, usar da violência — essa é sobretudo, mas não exclusivamente, psicológica. (Netflix)
O Refúgio (2020)
Mistura chique de drama e suspense, é um filme ambientado na Inglaterra da década de 1980 que poderia se passar em qualquer lugar do Ocidente e em qualquer época da História. Na verdade, não fosse a trilha sonora calcada em bandas oitentistas britânicas — New Order, The Cure, Bronski Beat/The Communards, Thompson Twins —, não fossem as referências a personagens marcantes e assuntos quentes daqueles tempos, como o presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan e o mercado de petróleo, não fossem as ausências dos celulares e das redes sociais, a trama escrita e dirigida pelo canadense Sean Durkin poderia estar acontecendo agora e aqui.
O Refúgio traz Jude Law no papel de Rory O'Hara, um carismático empreendedor britânico que, depois de 10 anos morando em Nova York, decide que é hora de retornar à terra natal. A contragosto, sua esposa, Allison (papel de Carrie), muda-se com ele e os dois filhos para uma mansão nos arredores de Londres. Absurdamente desproporcional para quatro pessoas, a casa é um personagem à parte. Quase como se fosse mal-assombrada, reflete, a um só tempo, a ambição desmedida de Rory, o afastamento familiar e, com seus quartos e corredores escuros, o ensombrecimento das almas de seus moradores. Bonita por fora e decadente por dentro, simboliza a grande pergunta do filme: o que acontece com uma vida calcada em mentiras e aparências quando a verdade começa a vir à tona? (Amazon Prime Video)
Tempo de Caça (2020)
O filme escrito e dirigido por Yoon Sung-hyun se passa em um futuro próximo, em que a crise financeira derrubou a Coreia do Sul — os cenários são zonas industriais decadentes, favelas e ocupações, bem familiares para o público brasileiro. O protagonista, Jun Seok (Lee Je-hoon), é um jovem que, após três anos de prisão, reencontra os amigos Ki Hoon (Choi Woo-shik, o filho pobre de Parasita) e Jang Ho (Ahn Jae-hong) e elabora um plano: assaltar um cassino clandestino e fugirem todos para um local tipo o Havaí, mais caloroso e colorido do que a realidade fria e cinzenta. Mas eles acabam entrando na mira de um assassino impiedoso (Park Hae-soo) — que pode ser encarado como a consciência de Jun Seok de que o sistema não permite ascensão, ou de que, como diz o pai pobre em Parasita, a vida nunca funciona como o sonhado para pessoas como eles ("O melhor plano é não ter planos", afirma Ki-taek no filme oscarizado. "Sem planos, nada pode dar errado. Se algo fugir do controle, não importa").
A estética e o ritmo narrativo são personagens à parte em Tempo de Caça. Em uma cenografia inóspita, com um jogo de luzes que traduz o "sentimento" da cena e uma sonorização opressiva (cada toque no corpo se faz ouvir), a trama, em seu início, é conduzida lentamente. Há um propósito: os laços entre os "ladrões por sobrevivência" precisam estar bem reconstituídos, porque é isso o que pode sustentá-los quando a noite cair sobre eles. (Netflix)
Você nem Imagina (2020)
Dirigido pela californiana filha de imigrantes de Taiwan Alice Wu, tem como protagonista Ellie Chu (Leah Lewis), uma adolescente chinesa que mora em uma cidadezinha nos Estados Unidos. Ela é apaixonada por Aster Flores (Alexxis Lemire), uma garota que namora, mas meio que por inércia, o cara mais popular do colégio. Inteligente e habilidosa com as palavras, Ellie costuma ser paga pelos colegas para fazer trabalhos escolares, mas certa vez é contratada para outro tipo de texto: Paul Munsky (Daniel Diemer), filho de fabricantes de salsicha e reserva do time de futebol americano, quer que ela escreva uma carta de amor justamente para Aster. É a chance de Ellie, mesmo que às escuras, se aproximar da luz de seu dia.
Parece uma situação típica de comédias românticas adolescentes, mas a diretora aborda tudo com soluções mais inesperadas — incluindo doses de melancolia e pungência — e muita sensibilidade. (Netflix)
Passageiro Acidental (2021)
Se você curte filmes que nos jogam contra a parede e perguntam "o que você faria?", convido a tomar assento com Passageiro Acidental. O brasileiro Joe Penna dirige Toni Collette, Daniel Dae Kim e Anna Kendrick nesta ficção científica em que três astronautas descobrem um intruso em meio a uma viagem de dois anos rumo a Marte. Trata-se de um problema muito sério: não há oxigênio para quatro pessoas a bordo.
Como o engenheiro Michael (Shamier Anderson) foi parar ali não vem ao caso. O fato é que ele está lá. E, não por acaso, o intruso é negro: Joe Penna reflete sobre racismo sem precisar recorrer a uma linha de diálogo sequer. Michael, o homem negro, é o "problema", a "ameaça" naquele ambiente exíguo que singra na vastidão do espaço. A propósito, o diretor explora bem esses dois cenários opostos, jogando com a claustrofobia nas cenas internas e com a vertigem nas exteriores. (Netflix)