Minha relação com a Maratona de Porto Alegre iniciou no mesmo momento em que eu engatinhava na Rádio Gaúcha, em 1998. Ainda trabalhando como estagiário no jornalismo geral, fui escalado pela primeira vez para ser o produtor no palco, ao lado do ícone da narração esportiva Armindo Antônio Ranzolin, que comandava a transmissão e relatava os metros finais da corrida no microfone da Gaúcha direto do palanque.
A função era avisar para o comandante as autoridades que chegavam até onde estávamos, para serem entrevistadas, e checar se todos os repórteres espalhados pelo trajeto estavam conectados para entrarem no ar e trazerem as informações. Eram muitos companheiros envolvidos em uma super transmissão. Muito mais complexa que uma jornada esportiva de futebol.
No dia, uma camionete, com alguém sentado na caçamba para narrar, acompanhava a rústica, andando na frente do pelotão. A forma de identificar os atletas era pelas listas com a numeração e os nomes. Tinha ainda a "Maratoninha" disputada pela criançada. Teve um ano em que eu narrei a prova da piazada empoleirado na traseira de uma Parati branca da Gaúcha. Foi divertido. E havia um caminhão baú, chamado de maratomóvel, que fazia o percurso pelos 42.195 km da prova. Vale lembrar que, em 1998, a largada e a chegada da corrida ainda eram no Parcão.
Anos depois, o mestre Ranzolin resolveu passar o bastão da apresentação do evento. Fui convocado para ser o titular do palanque. Baita honra e responsabilidade. Primeiro, dividindo a tarefa com o companheiro Fabiano Baldasso. A ideia era fazer uma condução mais leve. Depois, o parceiro foi o Jader Rocha. Olha, cansei de trabalhar desde a madrugada na cobertura da maratona e depois emendar com alguma transmissão de jogo da dupla Gre-Nal. Por tudo isso, sempre tive uma relação estreita e muito carinho pela Maratona de Porto Alegre.
Depois de alguns anos de ausência no acompanhamento da prova, finalmente chegamos a junho de 2022. Coincidentemente, o primeiro desafio da segunda temporada de Caminhos para a Vitória, que está preparando eu e a Alice Bastos Neves para a cobertura da Copa do Mundo no Catar, era nos colocar para correr a rústica de 8,5 km, dividindo o percurso. Metade para cada um.
Quem me conhece sabe que eu odeio acordar cedo. É herança dos quase 25 anos trabalhando na RBS, sempre no horário da tarde para a noite. Mas levantar às 4h da manhã para chegar às 5h na sede da RBS TV não foi um bicho de sete cabeças. Muitos domingos de maratona antes foram assim na minha vida. Apesar do frio, parecido com o da Sibéria, cheguei animado no Morro Santa Tereza. Toda a equipe já estava prontinha para descermos até a Avenida Diário de Notícias, local da largada.
Chegando no local já foi possível ver uma movimentação gigante de carros e de pessoas. Isso ainda era 5h30min. Eu e a Alice encontramos a turma da academia da PUC-RS e começamos gravar algumas coisas do episódio tentando driblas o frio congelante. Com uma turma de Santiago, consegui joaninhas para prender os nossos números nas camisetas. Óbvio que esquecemos desse detalhe. Mas a hora estava chegando e precisávamos nos organizar.
Como iria assumir os quilômetros finais da rústica, me desloquei de van com uma parte da equipe técnica, mais o nosso comandante Tiago Cirqueira e a Amanda Ferreira, profissional da PUC-RS que correria comigo. Na minha cabeça, estava claro. Vou correr até quando as pernas e o fôlego aguentarem. Depois caminho sem nenhum tipo de constrangimento. Recuperando as melhores condições, volto a correr mais um pouco. E assim vou alternando corrida e caminhada, até cruzar a linha de chegada.
Nessa dinâmica, pensava em fazer o tempo de 36 minutos. Cabeça e corpo estavam preparados para isso. Mas vamos combinar que não seria barbada. O cenário era preocupante: histórico de sedentário, pesando 150kg, apaixonado por comida, sem nunca ter participado de uma prova de rua e sem nenhum tesão por corrida. Tudo indicava que seria um grande resultado completar a prova correndo um pouco e caminhando bastante. Na real, imaginava um grande martírio.
Quando os primeiros atletas da rústica começaram a passar pela Avenida Copacabana, na beira do Guaíba, senti que em seguida a Alice iria aparecer. Ao longe consigo visualizar a minha companheira, ao lado do professor Diego Paixão, voando baixo, conforme eu havia previsto. Ela chegou plena, passada larga e firme, respiração perfeita, tranquilinha da Silva. Era como se estivesse passeando no shopping. Nos abraçamos. Trocamos palavras de incentivo. Colocaram a câmera Go Pro que ela carregava no meu peito, e chegava a hora de fazer a minha parte.
O sol já tinha mostrado a sua cara, mas a temperatura continuava baixa. O vento em sentido contrário gelava o rosto e as mãos, as áreas menos protegidas. Parti para os meu 4,25 km ao lado da minha escudeira Amanda. Sai com tanta pressa, que deixei ela para trás. A primeira coisa que eu senti era que minha cabeça estava preparada.
Sai leve, mente limpa, pensando em acertar o passo e respirar. Só isso. Ignorei distância e tempo. Comecei a pegar confiança. Pensei: "que coisa de louco, eu estou correndo de boa, sem sofrer". Quando cheguei no primeiro quilômetro, parceria que tinha andado apenas duas quadras. Segui no passo firme, sem acelerar demais. Quando me dei conta, já havia cruzado toda a Rua Sargento Nicolau Dias de Farias e estava ingressando na Avenida Wescenlau Escobar. Ai pensei com um palavrão: "ainda falta muito". Fiz o trajeto mentalmente. A Amanda seguia do meu lado, me orientando e perguntando se eu estava me sentindo bem. No lado oposto, inúmeros maratonistas gritavam para mim palavras de incentivo. Os corredores são solidários.
Administrando o corpo pesado, quando me dei conta, já estava passando pela placa dos 3 km. Eu já havia batido a meta do simulado feito na semana anterior no Parque Esportivo da PUC-RS. Não acreditei que, até aquele momento, eu tinha corrido sem parar. Nessa hora vem o pensamento fundamental: agora eu vou até o final. Eu POSSO. Como escrevi aqui no título da coluna da semana passada: "A vida nos mostra que os limites existem para serem encarnados e superados". Então, era a hora de dar um pouco mais e chegar até o final correndo.
Na reta decisiva, o fôlego estava tranquilo. Batimentos altos, mas sob controle. Sem dificuldades de respirar. As pernas estavam desgastadas. Carregar todo esse peso é fogo. Pelas orientações prévias, aumentar a passada diminui o impacto e, por consequência, alivia a dor nas canelas. Foi o que fiz. Quando avistei ao longe a linha de chegada, uma força vinda não sei de onde, fez com que eu acelerasse. Lá já estava a Alice para me dar um abraço apertado e a equipe da RBS TV para registrar o momento.
Que vitória. No meu mundo, foi a minha maior vitória como esportista. Eu consegui correr o tempo todo. Fiquei orgulhoso da minha garra. Cumprimos a nossa primeira meta. Fechei a prova com o tempo inacreditável de 30m20seg. Muito abaixo do projetado. Recebi um carinho gigante por onde passava. A felicidade foi enorme.