Cinco e meia da manhã de domingo (12): na Avenida Diário de Notícias, zona sul da capital gaúcha, uma fila enorme de carros levava milhares de pessoas à Maratona Internacional de Porto Alegre. Em Canoas, um pequeno caminhão saía da garagem para mais um dia de trabalho. Para a maioria dos mais de quinze mil corredores, aquela hora da madrugada é um horário incomum. Para o Hélio, de dentro daquele caminhãozinho, é uma rotina.
O frio de cortar a garganta e doer as pontas dos dedos mesmo vestindo luvas, fazia com que os participantes da Maratona recorressem aos mais variados e tecnológicos apetrechos para se esquentar. O Hélio usava o uniforme de sempre, com um casaco mais grosso por cima. Se era com as pernas que os atletas, amadores ou profissionais, travavam batalhas pessoais pelos melhores tempos e desempenhos. É em cima das rodas que o Hélio cruza as mesmas ruas em busca da maior superação pessoal.
Eram quatro da manhã quando meu despertador tocou. E eu devia estar focada na Rústica — o primeiro desafio da segunda temporada de Caminhos para a Vitória —, mas só lembrava do Hélio. Isso porque decidi tomar um banho para acordar. Liguei o chuveiro, tirei o pijama corajosamente e me enfiei embaixo da água quentinha. Sabonete pelo corpo e de repente... Morno... "Não, não pode ser", pensei. Frio... "Não agora", desesperei-me. Geladooo.
Acabou o gás. Em uma das madrugadas mais frias do ano e com uma corrida pela frente, não havia mais água quente. Tirei o excesso de sabão, sequei-me rapidamente, vesti as muitas camadas de roupas que já estavam separadas e pensei: "Devia ter chamado o Hélio antes".
Moro em um prédio antigo e os botijões de gás ficam dentro do meu apartamento. É minha a responsabilidade de acompanhar o gasto para ter fogo no fogão e banho quente. São três botijões. E, mesmo assim, deixo todos acabarem. Ao mesmo tempo. E sempre nos piores momentos. E só então, recorro ao Hélio, o entregador de gás.
Sim, ele se chama Hélio e entrega gás. Gás do Hélio, gás Hélio. Entenderam a brincadeira pronta? O segundo nome dele é Luiz. Hélio Luiz, filho de Ornélio Luiz. Recebeu o nome em homenagem a um tio, o Hélio. Muita gente chama ele só de Luiz, mas eu insisto no Hélio. Porque me divirto só de pensar na coincidência do nome com a profissão.
O Hélio entrega gás na minha família há muitos anos. Quieto, tímido até, mas brincalhão ao mesmo tempo. "Eu larguei o futebol, Seu Edmundo", contou ao meu pai certa vez. "Foi por causa das drogas", completou. Constrangido, meu pai ficou em silêncio sem saber o que responder. "As drogas das pernas que nunca funcionaram direito pra jogar bola", explicou o Hélio para gargalhada geral.
Quando o Hélio e a Daiane, esposa dele, tiveram a sua filhinha, convidaram-nos para o aniversário de um aninho. O imã com a fotinho dela perdeu a cor na geladeira da casa dos meus pais porque a Helen já completou nove anos. Vocês acreditam? A filha tem um tipo de autismo que demanda inúmeros tratamentos alternativos e complementares. Para poder proporcionar tudo isso a ela, o Hélio sai de casa todos os dias antes das seis da manhã e volta perto das onze da noite, entregando gás para quem precisa. Foi assim nesse domingo.
Depois de quase congelar correndo a rústica, voltei pra casa e liguei direto para o Hélio que prontamente entregou o gás. Conversamos brevemente sobre essa maratona louca e linda que é a vida. Tomei um banho quentinho e enquanto sentia o corpo descongelar, chorei. Chorei pela emoção bonita que tinha vivido naquela manhã de troca de energia com todas as pessoas na corrida, e pela corrida muito maior do Hélio e de tanta gente por aí.
Participar de uma prova de corrida de rua é uma emoção única. Cada um vivencia o seu próprio caminho à sua própria maneira, mas é impossível não se impactar com os outros. Corremos individualmente, porém, juntos. Meu amigo e parceiro Lucianinho me incentivou antes da prova e estava esperando com um sorriso e um abraço quando completei minha parte do trajeto. Fiz o mesmo por ele. Os grupos de corrida são exemplos de apoio mútuo. As próprias pernas são pares: duas trabalhando juntas para o objetivo final. Quem dera se na sociedade o pensamento fosse sempre assim coletivo.
Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que as operadoras de planos de saúde têm o direito de negar aos pacientes tratamentos que ainda não façam parte da lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mesmo que tenham sido prescritos por médicos e comprovada eficácia. Essa decisão pode afetar a vida da Helen, filha do Hélio. "O custo dos tratamentos é muito alto e é preciso constância para que as crianças não sejam prejudicadas", contou. Ele disse que vai ter que correr muito mais agora e, ainda assim, é possível que não dê conta de tudo.
Para que a corrida desse domingo acontecesse, centenas de pessoas trabalharam. O pessoal da organização, os agentes de trânsito, a segurança, a limpeza, os treinadores, quem fica no apoio dos atletas, as famílias, a nossa equipe que estava lá gravando, e tantos mais. Sempre costumo pensar que aquele amontoado de gente correndo é também uma soma de histórias, de superação, de emoção, de união. Todas ligadas ao Esporte. Mas o contato com o Hélio me lembrou de que é preciso exercitar a capacidade de aumentar o horizonte do olhar constantemente.
Todo mundo está correndo o tempo todo. A corrida da vida é sempre muito maior e não tem uma linha de chegada definitiva. São muitas chegadas. É necessário continuar. Queria, então, dedicar cada passinho que dei na Rústica ao Hélio, à família dele e à tanta gente que corre pela vida.
A maratona do Hélio que vende gás todos os dias era a inspiração que eu precisava. Afinal, é preciso ter gás para seguir.