Em vigor desde junho de 2023, o projeto de monitoramento a agressores de mulheres por meio de uma tornozeleira eletrônica teve 50 presos por desrespeitarem a zona de distanciamento estabelecida pela Justiça (25 em 2023 e 25 neste ano). Isso corresponde a 18,5 % dos 270 homens que passaram a ser acompanhados em 14 meses, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP).
Criado pelo governo do Rio Grande do Sul, a estratégia faz parte do programa RS Seguro e envolve o Poder Judiciário, com Juízes das Varas de Violência Doméstica e Familiar; o Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria da Segurança Pública, e também a Brigada Militar, a Polícia Civil e a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Lançado em maio de 2023, o monitoramento começou em Canoas no mês seguinte. São 2 mil kits disponibilizados para serem implantados em todo o Estado, formados por uma tornozeleira e um celular específico para ficar com a vítima.
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O número de agressores monitorados varia diariamente. No dia 14 de agosto, eram 127. Conforme a SSP, nenhum conseguiu agredir a vítima novamente. Cinco danificaram a tornozeleira e estão entre os 50 detidos. Para o Secretário Executivo do Programa RS Seguro, delegado Antônio Padilha, o número demonstra que o projeto é eficaz por somar uma central que está atenta a qualquer alerta.
— Antes, quando nós não tínhamos esse duplo monitoramento, quando a gente tinha, por exemplo, só o botão aquele (de pânico)... o agressor entrando na residência para agredir ela, ou mesmo com o intento de matar, imagina a situação, dessa pessoa ter que procurar o telefone muitas vezes dentro da bolsa, sabe, era praticamente impossível evitar um caso mais grave (...), mas esse fato de nós termos 50 casos de prisões, demonstra que a solução está funcionando muito bem — explica Padilha.
Quando a Justiça entende que o programa pode ser aplicado em algum caso de violência contra a mulher, o agressor passa a ser monitorado pelo dispositivo e a vítima é orientada a ficar com um telefone específico com o aplicativo. O juiz indica qual a zona de distanciamento que o homem deve cumprir e qual o período de tempo.
Se ele desrespeitar, imediatamente um sinal sonoro é disparado para a vítima e um mapa mostrará no celular dela a localização em tempo real do agressor, permitindo que ela possa solicitar ajuda ou fugir. Enquanto isso, centrais 24 horas divididas por região do Estado ficam acompanhando os dispositivos. Os agentes se comunicam com o infrator e a vítima, podendo enviar uma viatura até o local, caso necessário.
Em agosto de 2023, Zero Hora mostrou o caso de um dos agressores que tentou se aproximar da vítima, no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre. O homem, 37 anos, foi preso preventivamente após ter parado o carro ao lado do ônibus em que a vítima estava e passou a fazer ameaças. Com auxílio do dispositivo, as autoridades se comunicaram com a mulher e conseguiram chegar a tempo.
Até julho deste ano, foram concedidas 115.358 medidas protetivas para mulheres no Rio Grande do Sul, de acordo com dados do Tribunal de Justiça. Essas decisões servem para proteger as vítimas, e incluem determinações como afastamento do agressor de casa, do local de convivência com mulher e proibição de manter qualquer contato com ela. Em 2023, o total foi de 175.053 medidas deste tipo. Para a juíza-corregedora e coordenadora da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado, Taís Culau de Barros, o monitoramento ao agressor é uma ferramenta que está ajudando ainda mais a trazer segurança para as mulheres que resolvem tomar uma iniciativa e não ficar mais tolerando as agressões.
— Quando a gente diz que a mulher com medida protetiva mesmo assim é agredida, a gente desincentiva a mulher a procurar rede de proteção e, na verdade, é exatamente o contrário. A mulher com medida protetiva, na grande e imensa maioria dos casos, tem a sua vida protegida e salva. Com certeza o monitoramento eletrônico aumenta ainda mais a efetividade da medida protetiva — enfatiza.
Considerado um desafio para a segurança pública por acontecer em contexto doméstico, os feminicídios, que são as mortes de mulheres por questão de gênero, tiveram a redução de 36% no primeiro semestre deste ano no Rio Grande do Sul. Em 2023, foram 44 casos e, no mesmo período deste ano, 28. Um relatório divulgado pela Secretaria de Segurança Pública mostrou que seis feminicídios foram registrados em julho, enquanto em 2023 ocorreram nove casos. Isso representa uma queda de 33% para o mês.
Monitoramento estará disponível para todo o Estado em novembro
Atualmente, o programa está disponível em parte do Estado com 250 kits. As cidades com mais monitoramentos são Porto Alegre com 52 tornozeleiras em uso, Canoas com 16 e Alvorada com 12. No interior, os municípios com mais utilizações são Rio Grande com 11 e Pelotas com 10. Acompanhando o projeto desde a elaboração, o delegado Padilha explica que o programa estará disponível para todos os municípios gaúchos até novembro. Ele esclarece que é preciso uma análise do sistema judiciário para decidir se a tornozeleira é a melhor opção para cada caso.
— O magistrado é que vai decidir isso no caso concreto, e há situações em que o agressor é tão violento em que se sabe que ele não vai desistir do intento por mais que o Estado atue. Então, talvez, nesses casos o magistrado entenda: não, não vamos monitorar, nesse caso esse indivíduo tem que permanecer preso, porque ele é altamente perigoso — explica Padilha.
Para ajudar os magistrados a ter mais dados para entender se o agressor se enquadra para o monitoramento com a tornozeleira, foi desenvolvida uma parceria entre a London School of Economics, o programa RS Seguro e o Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado (Procergs). Eles criaram um Sistema de Análise de Risco de Violência Doméstica, que pode ser utilizado pela Justiça Criminal.
Com os dados da vítima, do agressor e o histórico do caso, o programa utiliza mais de 1.300 variáveis, que são critérios para fazer uma classificação de risco. A partir dos registros administrativos do histórico criminal das vítimas e dos infratores nos últimos 5 anos, a ferramenta estima se há risco grave de ocorrer um novo caso de violência nos próximos seis meses baseado no que já vem sendo acompanhado. Com isso, o juiz já consegue ver se há risco médio, alto ou altíssimo e pode levar isso em conta na hora da decisão.
Distribuição das tornozeleiras por cidade
Porto Alegre 52
São Pedro do Sul 3
Alvorada 12
Viamão 5
Gravataí 2
Alegrete 1
Canoas 16
São Luiz Gonzaga 1
Tapejara 1
Carazinho 1
Garibalbi 1
Rio Grande 11
Pelotas 10
Sapiranga 9
Nova Hartz 2
Fonte: SSP-RS
*Dados coletados na manhã de 14 de agosto de 2024. O número pode variar, de acordo com novas determinações judiciais.
“Todo o dia me ligam de um número desconhecido e ninguém fala nada, só escuto respiração”
A reportagem conversou com duas mulheres de Porto Alegre que foram vítimas de violência doméstica e que estão participando do programa. Por questão de segurança, os nomes delas foram modificados e não serão divulgados outros dados, como idade e profissão, que possam identificá-las.
Gabriela (nome fictício) conta que foi agredida fisicamente pelo ex-marido uma vez há mais de 10 anos. Na ocasião, pediu uma Medida Protetiva, mas depois retirou porque decidiu tentar novamente a retomada do relacionamento.
— Ele me humilhava muito. Eu e meus filhos. Chamava a própria filha de ordinária. Que era para eu dormir com um olho aberto e outro fechado, tava sempre afiando uma faca numa pedra, dizendo para eu me cuidar, quando eu ia trabalhar estava sempre na volta e dava um jeito de eu perder meu serviço para eu estar sempre em casa — relembra.
O fim da relação de quase 20 anos aconteceu quando o homem ameaçou a própria filha com uma faca. Na ocasião, a menina conseguiu gravar e avisou a mãe, que chamou a polícia.
— Eu sempre falei para ela, quando eu não tiver, se isso acontecer tu chama a Brigada. Só deu tempo de eu chegar em casa, a Brigada chegou — conta a vítima.
Desde o episódio, o agressor passou a ser monitorado com a tornozeleira, e Gabriela passou a ficar com o celular.
— Eu me sinto segura por estar com o dispositivo, porque é uma maneira de, no caso de ele se aproximar, eu vou poder acionar a Brigada. Mas todo o dia me ligam de um número desconhecido e ninguém fala nada, só escuto respiração. É todo o dia, só que eu não tenho como provar, porque eu tenho certeza que é ele — revela a vítima.
Além de receber o monitoramento, Gabriela também participa de outra iniciativa oferecida dentro da rede de apoio formada no Estado, o projeto Borboleta, que foi implementado pela Juíza de Direito Madgéli Frantz Machado do 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Porto Alegre, e é voltado ao acolhimento das vítimas.
— São mulheres que passaram por violência, então ali a gente tem atividades, a gente fala um pouco sobre o que aconteceu e como que a gente está se sentindo agora. É bom desabafar e não ficar guardando tudo — salienta Gabriela.
Além de ser um espaço para ouvir as vítimas, o programa ainda conta com ações de qualificação para inserir essas mulheres no mercado de trabalho e para geração de renda e independência financeira. Recursos para que, cada vez mais, possam esquecer a dor que passaram e pensar em um novo futuro.
“Ele sabia que, se isso acontecesse um dia, não ia ficar por nada”
Gisele (nome fictício) sofreu a primeira, e única, agressão após estar casada há 12 anos. Ela não teve dúvidas e, imediatamente, encontrou um meio de buscar auxílio.
— Nunca havia tido agressão antes. Durante uma discussão, o meu esposo me agrediu com tapas no rosto e puxões de cabelo. E para eu sair dessa situação, eu recorri a fingir que eu estava passando mal para ele, para tentar sair da situação, porque eu fiquei muito nervosa. E aí ele me levou até o hospital. Lá, eles verificaram comigo se tinha sido algum tipo de agressão. E eu afirmei que sim, que eu tinha ido até lá para me sentir mais segura e solicitar ajuda. Então, lá no hospital, eles chamaram a Brigada Militar, que veio, me atendeu e de lá mesmo, ele foi escoltado até o Palácio da Polícia e eu também em viaturas diferentes — relembra a vítima.
Desde o episódio, Gisele conta que nunca mais teve contato com o ex-marido.
— Ele sabe da minha posição com relação à agressão física à mulher. E ele sabia que, se isso acontecesse um dia, não ia ficar por nada, né? Alguma medida eu ia tomar. Então, em nenhum momento eu pensei em não fazer a denúncia — frisou.
Central recebe mais de 950 alertas no mesmo dia
A reportagem recebeu autorização para visitar uma das centrais que monitoram os agressores 24 horas por dia. Na parede, de frente para ao menos dois agentes, estão duas telas, uma com mapa do Estado e a localização das tornozeleiras, e outra com as fotos e os alertas que são disparados, conforme uma classificação de cores, que indica a gravidade da infração.
Em poucos minutos de observação, houve um momento em que um alerta sonoro foi acionado para indicar que um homem estava se aproximando da área onde estava a mulher monitorada. Imediatamente, um dos profissionais já estava com o mapa aberto no computador e passou a acompanhar a situação.
No dia 13 de agosto, foram registrados 954 alarmes, provenientes de 127 tornozeleiras ativas no Estado. Destes, 130 disparos foram de alerta vermelho, que pode indicar perda total de bateria, proximidade à vítima e violação da zona de exclusão.
Quando há uma grande quantidade de ocorrências, a equipe é preparada para adicionar reforços. A ideia é sempre fazer contato com o infrator e a vítima para entender o que está acontecendo. Se a situação se agrava, ou se perde a comunicação, os profissionais conseguem pedir que a viatura mais próxima vá até o local rapidamente.
Mais mulheres denunciando e recebendo apoio
Para romper com o ciclo da violência e quebrar esse sofrimento, que ocorre em silêncio, é preciso tomar uma atitude. Felizmente, cada vez mais mulheres estão decididas a buscarem as autoridades, como o Ministério Público, que também atua no combate à violência e faz parte do programa de monitoramento ao agressor. Essa mudança de comportamento é salientada pela promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, Ivana Battaglin.
— As mulheres já estão aprendendo quais são os seus direitos e de que forma elas têm que se libertar, como é que elas podem fazer para sair de uma relação violenta ou não deixar que a relação se institua, mas os homens não estão preparados para lidar com mulheres tão independentes, tão empoderadas, e eles não sabem reagir de outra forma que não seja com violência — constata.
Entendendo seus direitos, mulheres que foram vítimas de violência também são amparadas pela Defensoria Pública do Estado, que oferece orientação jurídica, apoio emocional e social, conforme explica Claudia Barros, defensora pública da 2ª Defensoria Especializada no Atendimento às vítimas de violência doméstica.
— A Defensoria Pública presta esse atendimento inicial, já lá desde a Delegacia e depois acompanha a medida protetiva durante o processo judicial. Se houver audiências de acolhimento da vítima, a Defensoria Pública vai junto com a vítima. Então, ela tem garantido o acompanhamento por uma Defensora Pública que vai assistir o seu processo, vai atuar em favor dos seus direitos — esclarece.
Claudia Barros também aponta que a Defensoria atua ainda auxiliando em outras questões legais, como o ajuizamento de ação de guarda, pensão para os filhos e regulamentação de convivência e visitas para o pai da criança, assim como na separação ou qualquer outra questão que ajude a vítima a se reorganizar após o distanciamento do agressor.
Amparadas por essa rede interligada, mulheres podem quebrar um ciclo de violência que fornece os recursos para não tolerarem mais ser humilhadas e possam identificar quando estão sofrendo qualquer tipo de abuso, sem ficarem caladas.
Para denunciar casos de violência contra a mulher contate o Disque-Denúncia pelo telefone 181. Além disso, há os Centros de Referência da Mulher, delegacias especializadas e a Defensoria Pública do Estado.