Em meio às difíceis negociações do governo federal com a Pfizer para comprar a vacina da farmacêutica contra a covid-19, uma nota divulgada no último sábado (23) pelo Palácio do Planalto classifica as exigências da empresa como “abusivas e leoninas”. Uma das cláusulas pede a isenção de responsabilidade no caso de efeitos adversos graves em quem for vacinado. Apesar da crítica da gestão Jair Bolsonaro, analistas afirmam que o pedido é comum, sobretudo em países ricos.
O governo federal cita a exigência do laboratório de que “seja assinado um termo de responsabilidade por eventuais efeitos colaterais da vacina, isentando a Pfizer de qualquer responsabilidade civil por efeitos colaterais graves decorrentes do uso da vacina, indefinidamente”.
Bolsonaro, que já avisou que não vai se vacinar, criticou o pedido e afirmou que concordar significaria que “se você virar um jacaré, problema é seu”. Daí viria a articulação para exigir que cada pessoa assine um termo ao ser vacinado, o que analistas apontam que pode desestimular os brasileiros a buscar uma dose. No Canadá, a ministra de Serviços Públicos, Anita Anand, disse que o pedido é normal:
— Vamos esclarecer: as cláusulas de indenização nos contratos de vacina são padrão. Todos os países, no geral, lidam com a questão da indenização das empresas, especialmente em casos de novas tecnologias como esta (de RNA mensageiro, usada também pela Moderna e estudada há mais de 20 anos).
Questionada se o Canadá aceitaria as cláusulas, Anita respondeu:
— Sim, vamos. Definitivamente, não somos diferentes de qualquer outro país neste mundo.
Outra farmacêutica, a AstraZeneca, pediu e levou a isenção de responsabilidade na maioria dos países com os quais negociou, declarou um executivo da empresa à agência Reuters. No Brasil, o laboratório fez a mesma exigência, e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) acabou por aceitar em arcar com qualquer eventual problema.
Nos Estados Unidos, Pfizer e Moderna ficaram imunes a processos. Na Europa, uma associação que representa várias farmacêuticas pressionou pela isenção, e a Comissão Europeia afirmou que atenderia ao pedido em parte, reportou o Financial Times.
A cláusula é mais comum em países desenvolvidos para evitar que indivíduos, movidos por má-fé ou simples desinformação, usem uma doença desenvolvida após a vacinação, mesmo sem relação com a dose, como justificativa para ganhar uma indenização de um laboratório. Esse problema foi uma realidade nos Estados Unidos na década de 1980.
À época, houve falta da vacina DTP (usada contra difteria, tétano e coqueluche) após uma série de processos levar companhias à falência ou a fugir dos Estados Unidos, explica Thomas Conti, professor de Economia no Insper, em São Paulo, e sócio da consultoria AED Consulting, focada em análise econômica do Direito.
Naquele período, havia boatos de que a dose causaria danos cerebrais permanentes – anos mais tarde, descobriu-se que isso era mentira e que o imunizante era seguro. Até a verdade vir à tona, a vacina levou a culpa por qualquer problema de saúde em crianças advindo após a injeção. Resultado: colocar qualquer vacina no mercado se tornou uma operação de risco financeiro, e os Estados Unidos se viram sem uma importante vacina.
Essa cláusula foi pensada para que pessoas que não passaram por nenhum risco não entrem na Justiça de forma oportunista para processar os laboratórios por riscos que não correram
THOMAS CONTI
Professor de Economia no Insper e sócio da consultoria AED Consulting
— Esse regime jurídico existe há 40 anos em países ricos. Em países em desenvolvimento, só dois tinham até 2018, entre eles o Nepal. As pessoas entravam na Justiça e ganhavam ações milionárias, mesmo a vacina sendo segura. Essa cláusula foi pensada para que pessoas que não passaram por nenhum risco não entrem na Justiça de forma oportunista para processar os laboratórios por riscos que não correram — afirma Conti.
A resposta dos Estados Unidos ao problema foi colocar a cláusula nos contratos com laboratórios, criar um fundo público de indenização aos raros casos de efeitos graves, abastecido com impostos cobrados sobre as vacinas, e criar um juizado especializado para julgar os casos de pedido de ressarcimento – assim, haveria juízes treinados para lidar com o assunto.
— Essas cláusulas são uma recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde). Nada surgiu agora para o coronavírus, é um padrão de países desenvolvidos. A Pfizer, ao negociar com vários países, tenta padronizar isso para facilitar o regime jurídico, senão precisaria se adaptar a legislações de diferentes países — acrescenta o professor do Insper.
A criação de um fundo para indenizar pessoas que tiverem efeitos graves de vacinas surgiu nos Estados Unidos também porque o país não tem um sistema de saúde gratuito, destaca Cristina Bonorino, professora de Imunologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto (UFCSPA) e membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI).
— Se criou esse mecanismo de proteção porque lá não tem SUS. Se alguma pessoa tem efeito adverso, haverá dinheiro para tratamento inicial até se provar que a culpa é da empresa. Alguns processos podem ser legítimos, mas outros, ilegítimos. A empresa gasta um dinheiro para fazer a droga, que passa pela agência regulatória. A agência estuda e dá o ok. Se a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) entender que o remédio faz mal, então não deveria aprovar. Se aprovou, é seguro — afirma.
Assim como qualquer remédio, vacinas têm uma chance mínima de causar efeito colateral grave. Esse pequeno risco, em uma pandemia que exigirá imunizar grande parte dos quase 8 bilhões de terráqueos, será naturalmente ampliado em escala – mas, ainda assim, será infinitamente menor do que o risco de não vacinar e permitir à covid-19 seguir ceifando vidas.
— Podemos achar um efeito colateral grave não detectado nos ensaios clínicos, nos quais não havia milhões de pessoas. Mas essa vacina da Pfizer já foi aplicada em milhões de pessoas e ainda não vimos nenhum efeito colateral grave — observa a médica infectologista Denise Garret, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute (em Washington) e ex-integrante do CDC, a Anvisa dos Estados Unidos.
Podemos achar um efeito colateral grave não detectado nos ensaios clínicos, nos quais não havia milhões de pessoas. Mas essa vacina da Pfizer já foi aplicada em milhões de pessoas e ainda não vimos nenhum efeito colateral grave
DENISE GARRET
Vice-presidente do Sabin Vaccine Institute
Especialistas entrevistados por GZH destacam que os embates entre Pfizer e governo federal demonstram a inabilidade do Planalto em negociar a vinda de vacinas ao Brasil. Na nota de sábado (23), o Palácio do Planalto confirmou que foi procurado pela Pfizer, mas diz que o quantitativo de “poucas doses” oferecidas pela companhia “causaria frustração a todos os brasileiros”.
O governo e o laboratório disseram que o primeiro contato ocorreu em junho do ano passado. Em entrevista, o CEO da companhia no Brasil diz que buscou o Planalto mais de uma vez, mas não obteve resposta. Depois, em comunicado enviado à imprensa em janeiro de 2021, a farmacêutica informou ter enviado três propostas para vender 70 milhões de doses da vacina ao Brasil. A primeira foi em agosto.
— Setenta milhões de doses não é um quantitativo pequeno. Talvez no início fosse pequeno, mas perdemos o timing da negociação para ter um quantitativo maior mais cedo. Quanto mais o tempo passa, menor a chance de termos um bom quantitativo. Veja o número de países que já têm essa vacina licenciada e em uso, países com rigor muito grande na regulação e nos direitos dos cidadãos — destaca o médico Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (Sbim).
Na lista de pontos criticados pelo governo Jair Bolsonaro, está também a exigência de um fundo garantidor com valores depositados em uma conta no Exterior. A cláusula é vista também como corriqueira por especialistas.
— Talvez seja a parte mais normal para garantir o pagamento. Temos um evento concreto no Brasil: o governo federal atrasa o pagamento das vacinas do Butantan. Se a gente imagina que a Pfizer negocia com mais de 40 países, imagina se cada um tiver atrasos como o governo federal tem com o Butantan. Isso pode inviabilizar a produção das vacinas — afirma Thomas Conti, do Insper.
O governo federal também reclama que precisaria fornecer o diluente e o gelo seco para transportar a vacina da Pfizer, que precisa ficar armazenada sob -70ºC. No site do CDC, a bula é pública e especifica que o diluente é soro fisiológico, um ingrediente comum.
— Se fosse uma seringa superespecializada que não é feita no Brasil, ok. Mas soro fisiológico o país tem condições de fazer. Se o Brasil não tem como fabricar soro fisiológico, então a gente está muito mal. As universidades disponibilizaram freezers para armazenar as doses da Pfizer e os laboratórios de física se colocaram à disposição para produzir gelo seco. Pela nota do governo e pela bula da vacina da Pfizer aprovada nos EUA, Israel e Reino Unido, parece uma falta de conhecimento do governo sobre como se negocia um medicamento e o potencial que o Brasil tem de implementar a vacina — reflete a imunologista Cristina Bonorino.
O que diz a Pfizer
Contatada por GZH, a Pfizer afirma que não comenta sobre negociações em andamento. A companhia destaca que “as cláusulas apresentadas ao governo estão em linha com os acordos fechados em outros países do mundo, inclusive na América Latina, sendo que diversos países já começaram a vacinação, salvando vidas”.
A farmacêutica também pontua que países como Estados Unidos, Japão, Israel, Canadá, Reino Unido, Austrália, México, Equador, Chile, Costa Rica, Colômbia e Panamá, assim como a União Europeia, “garantiram um quantitativo de doses para dar início à imunização de suas populações por meio de acordo que engloba as mesmas cláusulas apresentadas ao Brasil”.
A empresa também cita que aguarda resposta do governo brasileiro para fechar o contrato “com base nas doses ainda disponíveis para distribuição” e que a disponibilidade das vacinas depende “da data do fechamento do contrato de fornecimento diante da alta procura por doses e de contratos com outros países ainda em andamento”.
“Vale reforçar que a Pfizer encaminhou três propostas ao governo brasileiro, para uma possível aquisição de 70 milhões de doses de sua vacina, sendo que a primeira proposta foi encaminhada pela companhia em 15 de agosto de 2020 e considerava um quantitativo para entrega a partir de dezembro de 2020”, afirma o laboratório.
O que diz o Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde, questionado por GZH sobre como estão as negociações com a Pfizer, se ainda está interessado em comprar as doses e como responde ao posicionamento da farmacêutica de que as cláusulas apresentadas ao Brasil são as mesmas que foram colocadas na mesa com outros países, informou que fechou acordo de intenção de compra com Pfizer/BioNTech, Janssen (Jonhson & Jonhson), Instituto Butantan, Bharat Biotech, Moderna e Instituto Gamaleya.
“A partir dos memorandos de entendimento, a pasta segue com as negociações para efetuar os contratos, a fim de disponibilizar o quanto antes a maior quantidade possível de doses de vacina para imunizar a população brasileira de acordo com as indicações dos imunizantes", diz a pasta, em nota.
Com a Pfizer, o governo brasileiro pretende comprar as 70 milhões de doses e, com a Janssen, 38 milhões. Com as outras farmacêuticas, aguarda mais informações sobre estudos, preços e cronograma de entrega.
Na nota no sábado, o Planalto apontou que “em nenhum momento, o governo federal, por meio do Ministério da Saúde, fechou as portas para a Pfizer. Em todas as tratativas, aguardamos um posicionamento diferente do laboratório, que contemple uma entrega viável e satisfatória, atendendo às estratégias do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, uma ação de valores mercadológicos e aplicação jurídica justa que atenda ambas as partes”.