Enquanto a vacinação contra covid-19 dos grupos prioritários ainda engatinha no Brasil, o governo federal acenou positivamente para empresas que desejam negociar a compra dos imunizantes diretamente com os laboratórios. Uma nota divulgada na quarta-feira (27), assinada por quatro órgãos da gestão do presidente Jair Bolsonaro, esclarece os termos para essa possível aquisição.
O texto informa que um grupo de empresários procurou o governo federal na última semana para falar sobre as tratativas de empresas privadas para compra de 33 milhões de doses da vacina AstraZeneca/Oxford. Embora não se oponha a essas transações, o governo impôs condições para que elas decolem. Primeiro, é exigido que metade desses imunizantes seja doado ao Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19 do Ministério da Saúde, para ampliar a oferta à população. Outro ponto obrigatório é que as doses sejam usadas, exclusivamente, para a vacinação de funcionários das companhias, respeitando a ordem prioritária estabelecida pela pasta. Além disso, fica proibida a comercialização dos produtos.
Em direção semelhante, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) caminha rumo a um acordo com a indiana Bharat Biotech, responsável pela Covaxin. Conforme anunciado no próprio site da ABCVAC, em 13 de janeiro, o processo de compra de 5 milhões de doses "está muito bem encaminhado e a aquisição será feita assim que sair o registro definitivo do imunizante no Brasil". O quantitativo, explicou a entidade, seria disponibilizado prioritariamente para as 200 associadas localizadas em todo o território nacional.
As duas iniciativas, avalizadas pelo governo federal, têm gerado discussões sobre as questões éticas envolvidas no processo. O cenário de escassez de vacinas para os grupos que deveriam ser priorizados e de incertezas nos acordos que garantirão novas doses aos brasileiros são alguns dos aspectos levantados por especialistas ouvidos por GZH para criticar o posicionamento das companhias e da rede privada de vacinação.
“Apartheid” brasileiro
No entendimento de Alcino Eduardo Bonella, professor titular de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), membro da Sociedade Brasileira de Bioética e da International Association of Bioethics, um dos primeiros pontos a serem analisados é o conflito que a compra desses produtos pela rede privada pode acarretar. Criaria, diz o docente, uma competição entre governo federal e clínicas particulares pela aquisição das doses — a Covaxin está no rol de interesses do Ministério da Saúde, segundo consta no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19, divulgado em dezembro.
É injusto com os vulneráveis, com os mais pobres e com a fila pública. Criar duas filas é segregar pobres a uma fila maior e mais demorada, e deixar uma parte da população em uma outra fila menor e mais rápida, o que é o padrão brasileiro, do nosso Apartheid
ALCINO EDUARDO BONELLA
Professor de Filosofia da UFU, membro da Sociedade Brasileira de Bioética e da International Association of Bioethics
— No caso da covid-19, estamos em uma situação extraordinária. É diferente da situação comum em que atua o setor complementar, privado. Porque todos estão incluídos, ninguém está excluído. O que ocorre é que, com a escassez internacional, existe uma ordem de prioridade. Imagina se tivéssemos as vacinas, tivéssemos a fila e o setor privado dissesse: “Como tem pessoas que estão no fim da fila que gostariam de já ser vacinadas e podem pagar, qual o problema?”. Nós dificilmente aceitaríamos, pois seria furar a fila ou criar uma fila dupla em um momento em que os que estão na frente estão lá porque são vulneráveis e precisam ser vacinados primeiro — argumenta.
Ele também menciona o conflito na distribuição das doses, que privilegiaria aqueles com condições financeiras ou acesso a emprego em detrimento da população mais frágil.
— É injusto com os vulneráveis, com os mais pobres e com a fila pública. Criar duas filas é segregar pobres a uma fila maior e mais demorada, e deixar uma parte da população em uma outra fila menor e mais rápida, o que é o padrão brasileiro, do nosso Apartheid — critica, complementando que os critérios para vacinar contra a covid-19 devem ser os mesmos já estabelecidos nos transplantes: priorizando os que têm mais necessidade, independentemente das condições financeiras do paciente.
A advogada Tomlyta Velasquez, especialista em Biodireito e membro de grupos de estudos de Direito e Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), segue essa mesma linha de pensamento, reforçando que a possibilidade de compra na rede privada ou vacinação em empresas dividiria ainda mais a população.
— Vamos dividir a população, o acesso, tirando a responsabilidade que, a priori, seria do governo. A grande maioria dos brasileiros deveria estar resguardada pela Constituição e pelo governo por esse direito de acesso à saúde. Talvez, estejam colocando a saúde da economia em primeiro lugar — opina.
Para ela, se os cenários econômico e social fossem outros, de fato, a compra poderia ser um alento. No entanto, na situação atual do país, esse aval só abre precedentes para a relativização do Sistema Único de Saúde (SUS) e das responsabilidades que o governo tem perante a população.
A ABCVAC entende que a aquisição não criaria uma competição, mas, sim, complementaria a oferta do SUS. Em notícia publicada no site da associação, o presidente da entidade, Geraldo Barbosa, afirmou:
— Se essas vacinas não vierem para o mercado privado brasileiro, não virão nem para o Brasil. Vão para outro país.
Discussão nacional
O professor de Filosofia da UFU aponta que esse debate em torno da aquisição de vacinas é exclusividade brasileira. Nenhum país europeu ou mesmo Estados Unidos e Canadá sinalizaram essa possibilidade, reforça. Ele lembra que, ainda que as doses em discussão não sejam remetidas para uso pelo SUS, poderiam auxiliar países mais pobres.
— Se o setor privado entrasse agora, além de perturbar a vacinação pública, aumentaria a falta de vacina para os países muito pobres. A AstraZeneca deu uma lição de decência dizendo que só venderia para governos e para a Organização Mundial da Saúde.
Na live semanal que reporta dados da covid-19 no Estado, veiculada nesta quinta-feira (28), o governador Eduardo Leite se mostrou contrário à compra pela iniciativa privada. Ele enfatizou que considera errada a ideia de aquisição até que os grupos prioritários tenham as doses necessárias asseguradas pelo SUS:
— A vacina tem que ir não para quem pode pagar, mas para quem mais precisa, quem mais tem risco. E é o sistema público que coordena isso. Até que haja a garantia de volume, e eu não estou dizendo que se precise vacinar todo mundo primeiro para depois fazer a distribuição na rede privada, é importante seguir uma ordem de prioridades de interesse público, coletivo. Vacinar grupos prioritários ajuda a reduzir as internações, e isso melhora a vida para todo mundo. O interesse é público, não pode ser particular.
Com otimismo, vacinas até maio
O otimismo em relação à compra por parte das clínicas particulares se dá, principalmente, em razão de uma visita à Índia, feita no começo de janeiro, pelo presidente da ABCVAC, Geraldo Barbosa. Na ocasião, um pré-acordo teria sido firmado, garantindo 5 milhões de doses da Covaxin, que foi liberada para uso emergencial no país asiático mediante fortes críticas, devido à pressa no seu processo de aprovação.
O pediatra Wilson Vieira Marques, que é um dos proprietários da associada Oficina de Vacinas, de Passo Fundo, lembra que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda não aprovou o imunizante por aqui, portanto, ele não pode ser comercializado. Para que isso aconteça, é preciso que o laboratório ingresse com pedido de registro definitivo.
— Esperamos que possamos ter a nossa parte. Estamos na expectativa de tê-las por abril ou maio — diz.
Os valores das doses variam de acordo com o número de produtos adquiridos, custando entre US$ 32 e US$ 40 (entre R$ 172 e R$ 215, na cotação da tarde desta quinta). Essas cifras não contemplam as despesas das clínicas, portanto, o preço deverá ser maior.
Empresas grandes teriam interesse
Nomes de diversas empresas de grande porte foram mencionados como parte do grupo interessado na aquisição de 33 milhões de doses da AstraZeneca. Uma delas foi a Gerdau, citada como líder das conversas. Por intermédio de sua assessoria de imprensa, a companhia esclareceu que não coordena o movimento para compra de vacinas, porém, participou de diálogos para buscar soluções para a saúde e bem-estar neste momento. Acrescentou que não tem interesse em comprar as doses para seus colaboradores e que, eventualmente, participaria de ações voltadas para a doação integral de vacinas ao SUS (leia a íntegra abaixo).
A Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs) informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não comenta “possibilidades”. A ABCVAC também disse, na quarta-feira (27), que não falaria sobre as negociações para compra de vacinas.
Leia a íntegra da nota da Gerdau
"A Gerdau reforça que não coordena nenhum grupo ou movimento de aquisição de vacinas, mas que participou de diálogos no sentido de buscar soluções voltadas para a saúde e o bem-estar da sociedade neste momento. A empresa ressalta que não tem interesse em reter ou comprar qualquer quantidade de vacinas para seus colaboradores e que, também, participará apenas de iniciativas de viabilização de vacinas se a totalidade for doada ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Essa tem sido a postura da empresa desde o início da pandemia, quando, também em conjunto com empresas e governos, participou da construção de novos Centros de Tratamento Médico em Porto Alegre (RS) e São Paulo (SP), além de realizar doações de diversos equipamentos de segurança e prevenção."
Quem pode se vacinar
Com o número bastante reduzido de doses disponíveis no Brasil neste primeiro momento da fase 1 do Plano Nacional de Imunização (6 milhões em todo o país, 340 mil no RS), a prioridade para receber as doses é dos profissionais da saúde que atuam no atendimento de pacientes com coronavírus, idosos que vivem em lares de longa permanência ou acima dos 75 anos e indígenas. Ainda não há vacinação aberta em postos de saúde para demais pessoas previstas nos grupos prioritários.