A primeira morte de uma criança por síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) no Rio Grande do Sul, na quinta-feira (21), deixou famílias apreensivas. Mas quatro médicos entrevistados por GZH destacam que o quadro é raríssimo e, apesar de perigoso, não deve causar pânico entre a população.
Das 47,9 mil crianças e jovens de até 19 anos infectados por coronavírus no Estado, apenas 25 desenvolveram a síndrome – o equivalente a 0,05% de todas as contaminações na faixa etária, segundo dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES). GZH conversou com duas dessas famílias (leia os depoimentos no final desta reportagem).
No Brasil, os dados mais recentes do Ministério da Saúde, referentes a 5 de dezembro, apontam 577 casos da síndrome, com 39 mortes. Dos doentes, 55% eram meninos e 40% tinham entre zero e quatro anos. Das mortes, pouco mais da metade eram crianças entre zero e quatro anos.
A síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica é uma doença que costuma surgir de três a quatro semanas depois de crianças e adolescentes se infectarem por covid-19, mesmo quando o quadro foi leve ou assintomático. Diferentemente do coronavírus, ter uma comorbidade não influencia no desfecho. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que a síndrome pode acometer crianças e jovens de zero a 19 anos.
Os sintomas incluem cansaço, febre alta e persistente, manchas vermelhas no corpo, conjuntivite, lábios rachados, dor no abdômen, diarreia, dor de barriga, vômito e erupções cutâneas – não necessariamente há problemas respiratórios. Sem tratamento, a criança pode desenvolver uma inflamação generalizada no corpo que afete órgãos, insuficiência cardíaca e falência de órgãos.
O médico Fabrizio Motta, supervisor do controle de infecção em infectologia pediátrica da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), tratou oito dos 25 casos da síndrome no Rio Grande do Sul, dos quais três foram para Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Todos tiveram alta com bom estado de saúde.
É uma síndrome inflamatória pós-infecciosa grave, mas rara. Pais têm que estar alertas aos sintomas para consultar com o pediatra. Mas, hoje, há riscos por outras doenças infecciosas que são até maiores em uma criança, como o vírus influenza ou o vírus sincicial respiratório
FABRIZIO MOTTA
Supervisor do controle de infecção em infectologia pediátrica da Santa Casa de Misericórdia
— É uma síndrome inflamatória pós-infecciosa grave, mas rara. Pais têm que estar alertas aos sintomas para consultar com o pediatra. Mas, hoje, há riscos por outras doenças infecciosas que são até maiores em uma criança, como o vírus influenza ou o vírus sincicial respiratório. Não precisa ter pânico, precisa saber quais são os sintomas e buscar atendimento se suspeitar — resume Motta.
Os casos de síndrome inflamatória tendem a surgir mais conforme a pandemia de coronavírus segue descontrolada, mas, ainda assim, a incidência é baixa, explica o médico Marcelo Otsuka, coordenador do Comitê de Infectologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
— Não são todas as crianças que evoluirão com isso. É uma doença rara e secundária ao coronavírus. Os dados estatísticos sugerem que ela surge até um mês após a infecção, sendo que grande parte das crianças não teve manifestação da covid. Mas isso não deve ser motivo para pais deixarem de levar a criança para a escola. O número de casos não é significativo, as crianças estão extremamente prejudicadas em ficar em casa — afirma Otsuka.
A médica intensivista do Hospital das Clínicas de Porto Alegre Patrícia Schwarz atendeu em outubro uma adolescente de 15 anos com a síndrome. A paciente tivera coronavírus duas semanas antes da internação e foi entubada com dificuldade de funcionamento do coração – os pulmões não eram o grande problema.
Isso não deve ser motivo para pais deixarem de levar a criança para a escola. O número de casos não é significativo, as crianças estão extremamente prejudicadas em ficar em casa
MARCELO OTSUKA
Coordenador do Comitê de Infectologia Pediátrica da SBI
— Essa morte de uma criança no Rio Grande do Sul não muda a preocupação que temos que ter para a covid em qualquer faixa etária. Precisamos manter com as crianças os mesmos cuidados, mas a síndrome em si não é a maior preocupação — afirma Patrícia.
Para o infectologista pediátrico Renato Kfouri, vice-presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), o conselho aos pais é prestar atenção à saúde dos filhos e levá-los ao médico se houver algum problema.
— Essa é uma doença que causa inflamação em todos os vasos do corpo, e por isso ela se torna multissistêmica, porque inflama pele, rins, pulmão, coração e outros órgãos. Quando a oferta de sangue atinge os vasos do cérebro, altera a circulação e a oferta de oxigênio em diversos tecidos do corpo, o que causa lesão nos órgãos. Mas é uma doença muito rara. Isso não deve pesar na decisão dos pais de levarem os filhos para a escola. É mais fácil a criança pegar uma meningite — diz Kfouri.
A dificuldade de lidar com uma doença desconhecida por muitos médicos foi enfrentada pelo empresário Gabriel Ferreira, 35 anos, e pela dona de casa Gislaine Rodrigues, 38. No fim de novembro, o casal tivera covid-19 e o filho Pedro, de nove anos, manifestara apenas uma febre baixa por um único dia. Um mês depois, o garoto passou a reclamar de dor de barriga enquanto a família estava na praia, em Quintão.
No dia seguinte, véspera de Réveillon, surgiu uma febre de 38ºC. Após uma sucessão de diagnósticos equivocados – incluindo uma suposta virose –, a família voltou a Porto Alegre para levar Pedro a uma clínica particular. O garoto fez vários exames e, na hora de retirar os resultados, Gabriel e Gislaine tiveram a sorte de contar com a avaliação do médico plantonista, um pediatra que atuava também na Santa Casa e conhecia a síndrome inflamatória infantil.
Pedro foi internado às pressas no Hospital Santo Antônio e, dois dias depois, baixou na UTI pediátrica, onde teve um infarto. O tratamento com imunoglobulina, uma substância que diminui a resposta inflamatória do organismo, fez efeito, e ele teve alta 10 dias depois. Hoje, o menino está bem em casa, mas tem sequelas na artérias do coração e precisará fazer fisioterapia cardíaca.
— Era uma criança extremamente saudável, isso é o que mais me choca. Eu sugiro recomendar às mães para reparar em qualquer sinal diferente. Eu notei umas manchinhas avermelhadas no rosto dele. Tu jamais vais achar que o teu filho está com o corpo inflamando e por isso teve as manchas. Mas os pais têm que investigar qualquer mudança e levar ao médico — diz Gislaine.
A bancária Aline Sant’Ana, 40 anos, também foi pega de surpresa: em outubro, quando teve covid-19, o filho Miguel, de 10 anos, manifestou apenas tosse e nariz congestionado. Três semanas depois, o garoto apresentou perda de apetite e 38,5ºC de febre. No dia seguinte, teve dor abdominal.
Preocupada, Aline levou o filho duas vezes ao Hospital Santo Antônio, mas os exames de sangue e de raio X não acusavam problemas. No terceiro dia de febre alta persistente e com o surgimento de manchas avermelhadas pelo corpo, Aline voltou ao hospital com o filho e os exames de sangue já indicavam resultados alterados. Os médicos recomendaram a internação.
No terceiro dia hospitalizado, a inflamação atingiu a região cardiovascular, e Miguel precisou ir para a UTI. Um dia depois, esteve a ponto de ter um infarto, controlado pelos médicos. Ao todo, foram 12 dias no hospital e seis no leito intensivo. Hoje, o rapaz está saudável e já voltou à vida normal. Mas a mãe levou um susto – e faz um alerta.
— Agora o medo é pegar de novo, porque estou traumatizada. Eu subestimei o coronavírus e não segui as recomendações, realmente minimizei por achar que eu e meus filhos éramos saudáveis. Da mesma forma, vejo que muitas pessoas também subestimam. Se as pessoas tivessem ideia do que pode acontecer e da gravidade que isso pode chegar, tanto a covid quanto a síndrome, tomariam cuidado. Todo o cuidado que tomo hoje, deveria ter tomado antes — reflete.