A notícia de que muita gente furou a fila de vacinação no Brasil acendeu um alerta no Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS). Por meio do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, da Saúde e da Proteção Social, promotores de Justiça começaram hoje a rastrear informes sobre pessoas que teriam sido priorizadas na vacinação, mesmo sem terem esse direito. Um fenômeno, aliás, que ocorre em todo o planeta, como mostrou o repórter Rodrigo Lopes.
Os relatos necessitam de confirmação, mas os promotores já começam a conversar com gestores municipais. Vão lembrar aos prefeitos e presidentes de Câmaras de Vereadores quais são as prioridades. O Rio Grande do Sul distribuiu 341 mil doses de vacinas contra a covid-19 para 496 municípios.
Nesta primeira fase, o governo pretende vacinar 34% dos trabalhadores da saúde, todos os idosos que moram em asilos, todas as pessoas maiores de 18 anos com deficiência que vivem em residências inclusivas e toda a população indígena que vive em aldeias. O plano de vacinação pode ser acessado aqui.
A reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) localizou três cidades onde a ordem da vacinação gerou polêmica:
Em Alvorada, na Região Metropolitana, a aplicação de vacinas em funcionários lotados na farmácia pública do município levou a questionamentos em redes sociais. Um dos servidores do setor, que era cargo comissionado da secretaria de Cultura até 13 de janeiro de 2021, quando foi transferido, e foi cabo eleitoral do prefeito, José Arno Appolo do Amaral, foi vacinado ainda na quarta-feira (20), primeiro dia de imunização no município. Uma jovem estagiária da farmácia municipal também recebeu dose da CoronaVac no mesmo dia. Em suas redes sociais, postou: "linda, gostosa e vacinada".
A secretária municipal de Saúde de Alvorada, Neusa Abruzzi, defende que os servidores trabalham em um setor que atende cerca de 500 pessoas por dia, apesar de não atender diretamente casos de covid. A escolha da cidade contraria a nota técnica emitida pela Secretaria Estadual da Saúde, que recomenda como grupo prioritário aqueles trabalhadores que atuam diretamente em unidades referência para tratamento da covid.
A secretária assegura que não houve favorecimento:
— Com certeza não aconteceu. O nosso prefeito tem 80 anos e nem ele foi vacinado, ele vai aguardar o grupo prioritário dos idosos. Não fizemos nada (errado), está muito claro.
Segundo Neusa, as 711 doses que o município já foram suficientes para imunizar o grupo prioritário de 34% dos trabalhadores que atuam no Centro de Enfrentamento à Covid e ao Hospital de Alvorada. Por isso, a imunização passou para a próxima fase, e a prefeitura escolheu outros servidores da pasta, como os da farmácia.
Desde a quinta-feira (21), a reportagem solicita os números de vacinados de cada grupo prioritário, bem como a quantidade de pessoas que compõe cada grupo em Alvorada. Até o fechamento dessa reportagem, a prefeitura não respondeu.
Em Piratini, zona sul do RS, cinco atendentes de farmácias da rede privada foram vacinados. Dois deles, inclusive, postaram fotos da imunização recebida. Isso gerou críticas nas redes sociais, especialmente porque a imunização teria ocorrido antes da feita no hospital e postos de saúde locais. A prioridade deveria ser de quem trabalha em UTIs, leitos clínicos, UPAs e Samu, criticaram os internautas.
A secretária municipal de Saúde de Piratini, Gerusa Porto, assegura que tanto os servidores da saúde como os atendentes de farmácia foram imunizados de forma simultânea.
— Receberíamos 132 vacinas, chegaram 150. Como não temos indígenas cadastrados e nem e residentes em lares para idosos, decidimos vacinar outros que atuam na saúde. Os atendentes de farmácia vacinados são os que aplicam testes para covid-19 — justifica Gerusa.
Em Butiá, na Região Carbonífera, duas funcionárias de uma rede de farmácia foram vacinadas como grupo prioritário. A selfie delas no carro, segurando o cartão de vacinação, passou a ser compartilhada com questionamentos sobre a escolha.
O secretário municipal da Saúde, Paulo Almeida, explica que não são todos os cerca de 200 funcionários de farmácias de Butiá que serão vacinados, mas as duas são da única farmácia que faz testes de coronavírus no município. Também argumentou "que essa farmácia que vendeu e vende os testes para o município".
— Dos profissionais dessa farmácia, só foi feita a vacina nos profissionais que aplicam testes. As outras farmácias, clínicas particulares, ninguém recebeu a vacina. Usamos a lógica de que são trabalhadores de saúde — garante.
Ainda conforme o secretário, os trabalhadores de linha de frente do hospital e do Centro de Covid já receberam as vacinas, que são cerca de 95. Os idosos em instituições de longa permanência também foram imunizados, segundo ele. Butiá recebeu 130 doses da coronavac.
— Não houve privilégios em grupo algum. É o critério da nota técnica e nenhum trabalhador que não seja da saúde que aplica teste foi vacinado - reforça Almeida.
Secretaria de Saúde estranha prioridades noticiadas
Para a diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), Cynthia Molina-Bastos, nos casos das farmácias, só seria correto se os funcionários trabalham com a coleta do teste no nariz e na boca e depois da vacinação de todo o grupo prioritário de atendimento covid-19 (trabalhadores de urgência, emergência e postos de saúde). Já se o teste é só com o sangue no dedo, ela observa que "não há sentido" na imunização neste momento.
Sobre o caso de Alvorada, a diretora - que é uma das referências na vacinação e na estratégia no estado - entende que a farmácia pública municipal não é um local de "maior concentração de vírus" e só seria cabível se caso de todo o restante de servidores que atuam em contato direto com casos de coronavírus já tivesse sido imunizado.
— Só contato com um monte de gente não é critério. Se fosse assim, vacinaríamos primeiro o comércio. O que vale é o local com maior concentração de vírus, então por isso começamos com UTI, UPA e emergência covid e, depois, quem atende pessoas com sintoma respiratório, das equipes de saúde da família — detalha.
MP reforça pedido de obediência a critérios
A procuradora de Justiça Angela Salton Rotunno, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Saúde, sugere aos promotores de cada comarca do RS que solicitem informações às prefeituras acerca da existência de Plano Municipal de Saúde. E que enfatizem a necessidade de monitorar e redirecionar as ações programadas, conforme a realidade local, considerando o Plano Nacional e Estadual de Vacinação Contra a covid-19.
Aos prefeitos lembra a necessidade de respeitar a fila de prioridades e registrem a vacinação de forma diária nos sistemas de dados da saúde pública. Aos conselheiros municipais de saúde reitera a importância de fiscalizarem os atos da prefeitura e às polícias (civil e militar), que observem eventuais burlas na ordem dos vacináveis.
— Nunca é demais lembrar que os gestores que incentivarem ou permitirem a inversão de prioridades na vacinação estão sujeitos a processo por improbidade ou até criminal. Sem falar na possibilidade de ações por dano moral coletivo. Mas esperamos que tenham consciência para evitar isso — enfatiza a procuradora Angela Rotunno.