Uma síndrome que afeta crianças e adolescentes, que pode estar relacionada ao coronavírus, foi registrada em ao menos 14 estados e no Distrito Federal, mostra um levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo. Até agora, foram identificadas 144 pessoas com a condição ou com quadro suspeito e nove mortes no país — duas delas em análise.
Por enquanto, pouco se sabe sobre esse quadro clínico, que apresenta diversos sintomas, atinge vários órgãos do corpo e, se não tratado correta e precocemente, pode matar. Descrita como síndrome inflamatória multissistêmica (SIM-P), o quadro clínico é, possivelmente, uma reação grave e tardia à infecção pelo coronavírus. A condição pode afetar crianças e adolescentes de zero a 19 anos, mas há Estados brasileiros que monitoram o quadro até 21 anos.
Conforme o Ministério da Saúde, até julho, 71 casos tinham sido registrados nos estados de Ceará (29), Rio de Janeiro (22), Pará (18) e Piauí (2), além de três óbitos no Rio. Mas o Ceará, por exemplo, reporta 41 casos e duas mortes.
Dos 22 Estados que responderam ao pedido da reportagem, Acre, Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Roraima e Tocantins informaram que, até agora, não têm registros da doença. Cinco secretarias não responderam ou a reportagem não conseguiu contato. Os números são diferentes dos divulgados pelo Ministério da Saúde no último balanço da pasta, que conta com informações até semana epidemiológica 30 (até 25 de julho). Até a noite desta quinta-feira (20), não havia novos dados disponíveis.
"São informações de diferentes datas. Até a semana epidemiológica (SE) 30, que corresponde às notificações até 25 de julho de 2020, o Ceará contava com 29 registros de casos da síndrome, sendo um óbito. Já na SE 31, o estado somava 41 casos, com dois óbitos", explicou o ministério. Os casos se repetem em outros Estados, até mesmo com números menores.
No Pará, o ministério informa que há 18 casos, mas a secretaria estadual reportou apenas sete, que constam no próprio sistema nacional. A pasta explicou que as 18 pessoas foram diagnosticadas no Instituto Evandro Chagas, unidade de referência no estado, que segue com um estudo sobre essa síndrome inflamatória.
"Na ocasião do período de estudo em que esses casos foram diagnosticados, ainda não havia o monitoramento sistemático nacional dos casos. Desta forma, esses casos ainda estão sendo inseridos no formulário nacional", disse o ministério.
A doença já esteve presente na Europa e nos Estados Unidos
Os primeiros relatos foram registrados em países da Europa no final de abril, quando os serviços de saúde do Reino Unido e da França reportaram alguns casos. No começo de maio, foi noticiado um número de 15 crianças hospitalizadas em Nova York.
Mais recentemente, começaram a ter registros no Brasil. Hoje, estima-se que haja mais de 300 casos em todo o mundo. No Brasil, o Ministério da Saúde publicou nota de alerta sobre a síndrome em maio e passou a fazer o monitoramento em julho.
É possível que o país enfrente mais um problema de subnotificação, ainda que menos grave do que da covid-19, pelo atraso no envio e atualização de dados ou pela dificuldade de diagnósticos. O ministério reconhece que "por se tratar de uma nova apresentação clínica, ainda pouco conhecida, e de características muito semelhantes à Síndrome rara de Kawasaki, é possível que se tenha subnotificações de casos relacionados temporalmente à infecção pelo Sars-CoV-2".
Identificação é mais difícil de ser realizada
Geralmente, a febre é o primeiro indício da condição, que pode estar acompanhada de dor no corpo, fraqueza muscular, dor de garganta, de cabeça e abdominal, além de diferentes manifestações gastrointestinais. E como o próprio nome diz, a síndrome é multissistêmica é pode afetar vários órgãos e sistemas do organismo, como coração e sistema nervoso central.
— Como toda doença de notificação, tem delay entre a internação e o profissional de saúde fazer a notificação e coletar a notificação. É natural que tenha defasagem de números e podemos ter quadros que não foram identificados — diz Marco Aurélio Sáfadi, presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
No dia 7 de agosto, a entidade publicou nota de alerta para a necessidade de notificação obrigatória da SIM-P em todo o Brasil.
— A covid, claramente, tem subnotificação porque alguns casos são leves, assintomáticos, ainda não há disponibilidade suficiente de teste. No caso da síndrome, são poucos casos e casos que precisam de hospitalização. A tendência é que a subnotificação seja branda.
Saulo Duarte Passos, professor titular de pediatria da Faculdade de Medicina de Jundiaí, também prevê subnotificação de casos da SIM-P e reforça a necessidade de atenção e vigilância.
— O nosso sistema de notificação ainda é precário. Precisa de envolvimento maior das autoridades, dos profissionais de saúde, de sensibilização maior de todos.
Um fator que pode comprometer a correta notificação dos casos é a semelhança que a SIM-P tem com a síndrome de Kawasaki. Sáfadi explica que ambas podem ser confundidas por apresentarem sintomas parecidos, mas a faixa etária acometida e as manifestações mais intensas na síndrome identificada após a covid-19 podem ajudar a diferenciar um quadro do outro. E como ela afeta vários órgãos e sistemas do corpo, pode ainda ser classificada como outra doença.
Passos destaca que o que pode distinguir as condições é a chamada tempestade de interleucina, substância que é a base da cadeia inflamatória na covid-19 e responsável pela inflamação nos pulmões.
— O ideal é que tivéssemos um marcador de diagnóstico (para a SIM-P), mas não tem um exame nem existirá. Depende da sensibilidade clínica do profissional de saúde — afirma Sáfadi.