Quase seis meses depois dos primeiros relatos de pessoas contaminadas pelo coronavírus, médicos e pesquisadores já conseguiram compreender alguns aspectos da infecção. No entanto, muitas perguntas seguem sem respostas e novidades surgem a cada dia. Uma das últimas diz respeito a uma síndrome inflamatória multissistêmica observada em crianças e adolescentes.
Até agora, os dados indicam uma quantidade pequena de casos em menores de 19 anos acometidos pela covid-19, assim como ocorreu com os “parentes" do coronavírus atual, a síndrome respiratória aguda grave (sars) e a síndrome respiratória do Oriente Médio (mers). Um artigo publicado neste mês no jornal da Sociedade Europeia de Doenças Infecciosas Pediátricas recapitula alguns aspectos dessas doenças e se estende para a atual pandemia.
Conforme os autores, durante o período de circulação da sars, foram relatados casos de 41 crianças afetadas, enquanto na mers foram 38. Desta vez, a China reportou, em 11 de fevereiro, que 2% dos mais de 72,3 mil casos da doença envolviam crianças e adolescentes. Em todas as infecções por coronavírus, sintomas como febre, tosse e dores musculares foram relatados. Além disso, uma grande parcela é considerada assintomática.
Apesar dos dados, recentemente, médicos identificaram casos pontuais de crianças que apresentam resposta inflamatória exacerbada significativa associada ao coronavírus. É o que eles chamaram de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica, resposta imunomediada exacerbada do nosso organismo que acaba por agredir o próprio corpo e que tem características semelhantes a outras condições, como as síndromes de Kawasaki e do choque tóxico.
Um documento distribuído pelo Departamento de Saúde do Estado de Nova York, nos Estados Unidos, alertou para possíveis indicativos desse problema: marcadores inflamatórios elevados, febre, sintomas abdominais, erupção cutânea, miocardite e outras alterações cardiovasculares. Alguns casos, diz o texto, podem necessitar de tratamento intensivo. Essa síndrome, alerta o informativo, pode ocorrer dias ou semanas após a fase aguda da covid-19.
Marcelo Otsuka, coordenador do comitê de infectologia pediátrica da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), diz que um dos pontos que já foram observados na infecção pelo coronavírus é a chamada “tempestade inflamatória”, ou seja, a reação que ele produz no nosso corpo.
— Da mesma forma que vemos a tempestade inflamatória por conta da infecção, sabemos que algumas doenças ocorrem por autoimunidade. Isto é, o corpo agredindo o próprio corpo pela resposta imune exacerbada. Doenças como Síndrome de Kawasaki e Síndrome de Guillain-Barré acontecem em função dessa resposta. São situações um pouco mais raras e associadas a várias outras doenças desencadeantes — explica.
Em um painel internacional promovido no começo do maio, médicos que atuam em unidades de tratamento intensivo pediátrico trocaram experiências e informações sobre os casos que estavam observando. Na ocasião, a reumatologista do Boston Children’s Hospital Mary Beth Son disse que não é possível afirmar que essas repercussões são causadas pela covid-19 (nem todos os pacientes testaram positivo), no entanto, sugeriu que há uma relação temporal. Embora a correlação exista, os médicos ainda não sabem quais mecanismos estão em ação. Eles especulam que uma resposta imune adquirida à covid-19 ative um processo inflamatório em crianças geneticamente suscetíveis.
Outro artigo, dessa vez publicado no periódico The Lancet, também joga luz a esse achado. Assinado por profissionais de um hospital infantil do Reino Unido, o texto destaca que esse é um novo quadro que tem sido visto em crianças previamente assintomáticas, mas que pode evoluir para problemas mais sérios, inclusive do coração.
Quadros mais leves
É importante ressaltar que, na maioria dos casos, as crianças têm uma evolução melhor da covid-19 do que os adultos. Otsuka menciona algumas teorias para entender esse processo. A primeira delas considera que o nosso organismo reaja de forma inadequada quando exposto ao vírus, causando a chamada "tempestade inflamatória", que está intimamente relacionada com a gravidade dos casos. A outra sugere que haja relação com receptores com os quais o coronavírus se liga nas nossas células. Esse receptor é mais presente com o passar dos anos.
— É uma soma de fatores. Por enquanto, pensamos nessas situações. Vemos que as crianças não são tão comprometidas, mas, mesmo assim, elas são. Há casos graves com necessidade de UTI. Mas a evolução é melhor que em idosos ou pessoas com outras doenças associadas — diz o especialista da SBI.
Por terem quadros geralmente mais leves ou sequer apresentarem sintomas, as crianças precisam de cuidado redobrado, pois podem acabar se tornando vetores de transmissão para adultos e idosos.
— Temos pouco conhecimento sobre o quanto elas transmitem e por quanto tempo — diz Otsuka.