Esta quinta-feira, 7 de janeiro de 2021, entrará na história como a data em que o Brasil chegou a 200 mil mortos por coronavírus. Jamais, tantas pessoas morreram pelo mesmo motivo em tão curto espaço de tempo – é como se toda a população de Passo Fundo ou de Alvorada desaparecesse do mapa em menos de um ano.
Na maior crise sanitária recente do país, o Brasil concentra 2,7% da população mundial, mas 10,6% de todos os óbitos do mundo. A marca de 200 mil vítimas é alcançada quase cinco meses depois de o Brasil ter registrado 100 mil mortos, em agosto. Para analistas, é a prova de que o país fracassou em controlar a pandemia.
O registro desta quinta-feira, de 200.498 vítimas (sendo 1.524 nas últimas 24 horas), segundo boletim do Ministério da Saúde, acontece em meio ao atraso do governo federal para comprar vacinas, seringas e agulhas e ao comportamento do presidente Jair Bolsonaro de reduzir a gravidade da pandemia. O Brasil é, hoje, o segundo país com mais vítimas da covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, onde o presidente Donald Trump também minimiza os riscos da doença.
Apesar de mais de 45 nações já terem começado a vacinação, o Brasil não tem sequer data fechada para começar a imunizar a população em nível nacional – apenas uma previsão para janeiro. Enquanto isso, o país é atravessado pela segunda onda da pandemia – com piora mais expressiva em Amazonas, Rio de Janeiro, Rondônia, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Em Manaus, a covid-19 voltou a lotar hospitais e causar mortes em casa.
As 200 mil mortes por coronavírus reduziram em quase dois anos a expectativa de vida dos brasileiros, de 76,5 para 74,6 anos, mostra estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É a primeira vez desde a década de 1940 que a expectativa de vida cai. Sozinha, a covid-19 matou o triplo do que mortes por causas externas, como acidentes de trânsito e assassinatos.
Duzentos mil óbitos é muita coisa. É um flagelo do ponto de vista sanitário, epidemiológico e do sofrimento das pessoas
RICARDO KUCHENBECKER
Gerente de risco do Hospital de Clínicas
O primeiro caso confirmado no Brasil foi em 26 de fevereiro e a primeira morte, em 17 março. De lá para cá, brasileiros foram instruídos a usar máscaras, lavar as mãos e evitar aglomerações, mas a desigualdade social brasileira cobra sua fatura. Por necessidade financeira, milhões tiveram de voltar ao trabalho para sustentar suas famílias.
— Duzentos mil óbitos é muita coisa. É um flagelo do ponto de vista sanitário, epidemiológico e do sofrimento das pessoas. A gente tem experiências regionais e municipais dignas de nota, mas, no conjunto do país, a resposta foi absolutamente insatisfatória. Foi um conjunto de medidas não implantadas ou apenas parcialmente implantadas e que contribuíram para chegar a esse triste recorde — afirma o médico epidemiologista Ricardo Kuchenbecker, gerente de risco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
O Brasil vem registrando mais de 1 mil vítimas por dia. Antes da pandemia, o fato paralisaria o Brasil. Hoje, a população perdeu a sensibilidade como estratégia para tocar a própria vida, afirma a psicanalista Vera Iaconelli, doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, em São Paulo.
— O fato de ser uma quantidade tão grande de mortes e de ser um risco tão próximo faz as pessoas se dessensibilizarem para fugir da realidade. A queda de um avião da Chapecoense é improvável de acontecer, então a pessoa se permite sofrer pelo outro de forma empática. Na pandemia, é o oposto: como o risco é grande, próximo e não temos controle, as pessoas se dessensibilizam para seguir a própria vida. Mas essa negação cai por terra quando alguém próximo morre. Vivemos agora a primeira experiência reveladora do DNA do brasileiro: não estamos interessados no bem comum, sempre pensamos em nós próprios e no nosso grupo — afirma.
A covid-19 ceifou as vidas de pais, avós, trabalhadores, empresários, profissionais da saúde, agentes da segurança e lideranças indígenas. As mortes se somam uma a outra como se cada vida fosse um custo necessário para a roda girar, avalia o antropólogo da saúde Jean Sagata, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A queda de um avião da Chapecoense é improvável de acontecer, então a pessoa se permite sofrer pelo outro de forma empática. Na pandemia, é o oposto: como o risco é grande, próximo e não temos controle, as pessoas se dessensibilizam para seguir a própria vida
VERA IACONELLI
Doutora em Psicologia pela USP
— A pandemia ganhou essa dimensão com um negacionismo da ciência em muitos âmbitos. Não estou nem falando só de governo federal, mas também de governos estaduais, prefeituras e grupos empresariais. Quando técnicos da saúde dizem que estamos em situação grave, mas prefeitos entram com recurso para mudar status de bandeira e flexibilizar, isso é uma forma de negar a ciência e potencializar os efeitos da pandemia. Pessoas estão sendo vistas como serviço essencial, e essas pessoas, se morrerem, são apenas um custo de manutenção na vida dos outros — diz Sagata.
Mas se engana quem acredita que as mortes não pesam na economia. O tratamento de cada indivíduo em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) pelo Sistema Único de saúde (SUS) custa entre R$ 2,5 mil e R$ 3 mil em um único dia, o suficiente para até 10 meses de auxílio emergencial. Além disso, as vidas que se vão também representam uma perda no potencial de gerar riqueza para o Produto Interno Bruto (PIB) do país.
Estudo do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre, da Fundação Getúlio Vargas) chegou a mensurar, em outubro, quando o país tinha 160 mil mortos, que as 63,2 mil vítimas entre 20 e 69 anos deixaram de gerar R$ 1,3 bilhão em renda para a economia.
— São pessoas que faziam parte da força de trabalho e que morreram pela covid-19. Há uma perda também porque não temos vacina bem definida, então ficamos com a economia dependendo do aumento ou não do número de casos. O país ainda fica com mais famílias precisando de apoio financeiro porque os familiares que ficam não têm uma fonte de renda, o que fragiliza o orçamento e deixa essas pessoas social e economicamente mais vulneráveis — afirma Joelson Sampaio, coordenador do curso de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
Uma dessas pessoas foi o vendedor de automóveis Rerisson Sandim Machado, 32 anos, que se infectou no trabalho e, mesmo sendo saudável e jovem, faleceu em menos de um mês. Deixou a filha recém-nascida Agnes, com quem conviveu por apenas dois meses, e a esposa, a empresária Daniella Rodrigues, 29 – o casal estava junto há 14 anos.
Os primeiros sintomas surgiram em 5 de setembro, durante uma viagem a Noiva do Mar, no Litoral Norte. Três dias depois, ele foi ao hospital, mas recebeu o diagnóstico de infecção urinária em meio a um raio X que não apontara nenhum problema no pulmão. Rerisson piorou em poucos dias e, com febre e falta de ar, foi internado no hospital com 75% dos pulmões comprometidos. Após cinco dias internado, foi entubado. Daniella lembra das últimas palavras ditas ao marido antes do procedimento:
— Te amo muito, mesmo sendo do jeito que tu é — disse, em referência a uma piada interna do casal. — Não te preocupa, já organizei as coisas em casa e até vendi um carro para ti.
Rerisson riu da companheira e murmurou:
— Tu é a melhor, não adianta.
A gente aprende a conviver com a dor porque a dor não vai embora. Às vezes acho que estou inerte, mas tenho que trabalhar, tenho que sustentar uma filha, aí respiro fundo e vou. Ela foi o presente que ele me deixou, ela me dá forças para seguir em frente
DANIELLA RODRIGUES
Empresária
Foram as últimas palavras à esposa. Aos 32 anos, Rerisson faleceu em 6 de outubro, pouco mais de 20 dias depois dos primeiros sintomas de coronavírus. A partida inesperada deixou a esposa desassistida nos hábitos mais prosaicos do cotidiano. Precisou assumir os banhos da filha – uma responsabilidade que o marido orgulhosamente tomara para si – e voltar a dirigir um automóvel, o que Daniella não fazia desde os 18 anos.
Quando recebeu GZH em sua casa, em Canoas, Daniella vestira Agnes com uma camiseta do Internacional dada por Rerisson, que era apaixonado por futebol. Mãe e filha agora buscam refazer a vida.
— A gente aprende a conviver com a dor porque a dor não vai embora. Às vezes acho que estou inerte, mas tenho que trabalhar, tenho que sustentar uma filha, aí respiro fundo e vou. Ela foi o presente que ele me deixou, ela me dá forças para seguir em frente — diz Daniella.
Carta de Daniella para o marido Rerisson
“Quem era Rerisson? Aquele cara de sorriso fácil, sempre fazendo uma piadinha ou um enigma. Extremamente inteligente e muito curioso também, um tanto quanto irritante às vezes quando sabia que estava certo. E quem não é?
Um verdadeiro Amigo, sempre pronto para ajudar. Um homem raro entre tantos, carinhoso, cavalheiro, honesto. E, claro, com aquela trova que todo bom vendedor tem. Sempre me dizia: “Se eu conseguir um dia te vender algo, aí sim vou saber que sou o melhor vendedor”. Mal sabia ele que já havia me encantado com o seu jeito de ser, e por isso vivemos por 14 anos felizes. Um marido exemplar.
Ah, e um gaúcho nato. Amava dizer que suas origens eram da fronteira. Tinha aquele jeito meio grosso de falar, mas com um baita coração. Sabia tudo sobre futebol, todas as datas, títulos de qualquer time que você perguntasse ele sabia dizer: quem jogou, por que saiu e por aí vai...
Um excelente pai. Bah, que cara. Nas noites em que a Agnes ficava acordada, ele me deixava dormir e ficava cuidando dela para eu poder descansar. Os banhos eram sempre com ele.
Terei uma missão muito grande de ensinar nossa filha a te amar sem ter te conhecido. Mas saiba que, cada história nossa, terei o maior prazer em lhe contar. Falar do pai fantástico que ela tinha, do filho amoroso que era, do irmão presente que era, do sobrinho querido, do tio e dindo chato, do amigo para todos as horas.
Minha eterna gratidão, Amor, por poder ter feito parte da tua história. A dor da tua perda será eterna, mas serei sempre grata pelo presente que me deixou: o fruto do nosso amor, nossa filha amada."