Chegar à marca de 200 mil mortos por coronavírus, nesta quinta-feira (7), é o resultado de um Brasil dividido no qual o governo nega a gravidade da pandemia e convida a população para se insensibilizar diante da tragédia nacional, avalia o psicanalista e professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Tales Ab’Sáber.
Em entrevista a GZH, Ab’Sáber, que é autor de livros relacionando política e psicanálise, analisa os motivos de parcela da população ignorar as mil mortes diárias e as 200 mil vítimas da pandemia no país – nunca, na história do Brasil, morreram tantas pessoas em tão pouco tempo por um mesmo motivo. Para o psicanalista, as milhares de vítimas são o preço pago pela forma como se lidou com a covid-19.
Veja trechos da entrevista:
Chegamos a 200 mil mortes e voltamos a ter mil mortos por dia, mas isso não parece impactar a vida das pessoas. Por que os brasileiros estão insensíveis?
De fundo, existe uma insensibilidade geral pelo princípio da cultura do hedonismo, narcisismo, egoísmo e consumo. O mercado trabalha com a excitação, a fantasia e com o que é positivo. Vá e realize seu sonho. Não existe espaço para problemas, angústias, pensamento, dúvida. É sempre faça, ganhe e consuma. O governo jogou com isso, as pessoas querem trabalhar e viver sua vida. Mas estamos em uma crise de saúde gravíssima mundial que produz milhares de mortes. Há ainda um governo que se desresponsabiliza de assumir uma questão pública de planejamento. Há um tempo, o governo disse que as pessoas que têm que morrer vão morrer. O governo declarou que a pandemia é problema da vida das pessoas e que ninguém deveria parar de trabalhar. O que se realiza hoje no Brasil é uma vitória ideológica dessa proposição do governo. O Brasil é a união da insensibilidade com o gozo geral da mercadoria. Há um governo que se retira do problema, não aceita que é responsável e convida as pessoas a essa insensibilidade. Mas é mais do que insensibilidade: as pessoas deliram que são onipotentes e acreditam que podem ir para a praia ou a festas e estão blindadas. Com isso, as pessoas dizem também que, se não for assim, não sabem viver. É complexa a recusa da realidade que acontece no Brasil.
Qual a face que o Brasil mostra neste momento?
O Brasil é um país rachado. Metade da população acha uma loucura o que acontece, um absurdo, e 30% acham que o que acontece é excelente. É evidente que a performance política do governo brasileiro afetou profundamente a saúde pública. É um país rachado entre um espaço democrático e um espaço que aceita qualquer coisa.
Em muitos contextos, o cuidado com a pandemia é associado ao feminino. O presidente Jair Bolsonaro já disse que o Brasil tem que deixar de ser um país de maricas. O que está por trás desse argumento?
É uma grosseria sem tamanho, é a ideia de que a civilidade do cuidado diante de uma doença contagiosa se transfigura em uma falta de coragem, de hombridade. Essa fala é machista, homofóbica e totalmente insensível a certas dimensões que não são só do feminino, mas da civilização. Civilização é pacto de construção de vida. E que vida é construída no Brasil? É uma política da inimizade, da arrogância e do delírio. Há um governo que diz explicitamente que não está preocupado com a vida de ninguém. Para que um governo existe, então? É muito claro o adoecimento do sentido do que é público. O Brasil vive uma patologia política séria, e paga isso com número de mortos e aparecendo no mundo como um país bárbaro.
Temos mortes privadas, vividas em casa, mas também mortes de lideranças inspiradoras, desde líderes indígenas até artistas, como Nicette Bruno. Como nos afeta a morte de uma pessoa que nos inspira?
Vivemos a pressão de uma massa de mortos, e isso tende a nos anestesiar. Não vi nenhuma morte de ninguém impactar demais as pessoas. Não teve morte especial no meio desse massacre. Os negacionistas contam com essa baixa intensidade do choque de massa. É preciso um esforço para dizer para si mesmo: estão morrendo 200 mil, mas poderiam ter sido 50 mil, o governo poderia ter feito muito mais do que fez. Mas parte da população não está disposta a saber. É um país rachado.
A população recebe dois discursos opostos: médicos dizem que a pandemia está novamente perigosa, mas comerciantes e governos afirmam que está seguro sair na rua. Qual o efeito disso na psique da população?
Temos uma sociedade que virou uma luta de opostos. Há um ou mais argumentos sempre em guerra um contra o outro. É evidente que os dois discursos são verdadeiros e têm elementos de verdade. O ideal seria articular essas realidades, e não pôr uma contra a outra. Vacina virou bandeira política, mas vacinas são vacinas. O governo (federal) optou por um terceiro discurso, de criticar "a vacina chinesa".
Pela sua experiência clínica, como está a saúde mental das pessoas?
As pessoas estão muito cansadas e ficaram confusas ao longo do ano. Os mais pobres e que precisam trabalhar se arriscam e são comunicados de que sua vida vale menos. Por outro lado, há pessoas isoladas em casa em contato com o mundo através dos computadores, o que é uma transfiguração psíquica muito grande. Há uma espécie de luto geral da vida cotidiana, com um grande mal-estar e sofrimento. Isso tem a ver com as pessoas delirarem que está tudo bem, cansei, quando o perigo não passou. Toda a gestão da pandemia era para não sobrecarregar os hospitais, mas quando o governo diz "faça o que você quiser", aí qualquer coisa pode acontecer. No próximo mês, já se fala que será uma tragédia.
O senhor acha que vamos sair melhores dessa pandemia?
Se olharmos para os Estados Unidos, a irresponsabilidade política que aumentou a violência da pandemia foi punida. As pessoas reconheceram que não se pode lidar com uma situação dessas do jeito que estava. No Brasil, o autoritarismo é de outra ordem, não sei se as pessoas dirão que o governo aprofundou nossa dor. Para sair dessa pandemia, precisamos ser mais sérios do que somos. Tivemos a pandemia do vírus e a pandemia da irresponsabilidade pública. Vamos sair melhores? Olha, se continuarmos fazendo o mundo do jeito como está agora, não há nada de melhor para frente.