Após o atraso do governo na negociação das vacinas com farmacêuticas, o fracasso no pregão de terça-feira (29) para a compra de insumos para imunização é o mais novo obstáculo para a entrega das doses contra o coronavírus aos brasileiros. Apesar da expectativa do Ministério da Saúde em adquirir 331 milhões de seringas e agulhas, o preço ofertado pelo governo, abaixo do valor de mercado, e a demora em organizar o pregão permitiram a compra de apenas 2,4% do necessário. Será preciso realizar um novo pregão, ainda sem data para o lançamento.
Os insumos para a vacinação costumam vir da indústria nacional ou por meio de importação da China. Além desta compra, o ministério espera receber 40 milhões de seringas da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) em março. O secretário-executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco, disse que a vacinação no Brasil pode começar entre 20 de janeiro e 10 de fevereiro.
A compra de insumos costuma ser efetuada por Estados, mas, durante a pandemia, o Ministério da Saúde optou por centralizar a aquisição para evitar uma corrida como a da compra de respiradores. No inverno, os aparelhos foram adquiridos por Estados por preços altíssimos em meio à alta demanda.
O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Eduardo Lula, afirmou em entrevista ao jornal O Globo que o país corre “risco real” de ter vacina e não agulhas o suficiente para vacinar a população. O entendimento é referendado por médicos, pela própria indústria e pela Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs).
— A gente tem o melhor programa de imunização no mundo, e infelizmente ficamos atrás na vacinação da covid-19, inclusive nos insumos necessários. A gente entende que o ministério demorou muito para essa aquisição. Nesse momento em que todo mundo está atrás de seringas, vai acontecer o mesmo que aconteceu com respiradores. A gente vai acabar não encontrando porque não temos produção adequada para essa demanda, e sabíamos disso há meses — afirmou o presidente do Conass.
A compra deveria ter sido feita no meio do ano, e a decisão de efetuá-la somente agora coloca o Brasil na disputa por insumos ao lado de diversos países que já estão com a vacina nas ruas, afirma Rosana Richtmann, médica infectologista e consultora do comitê de imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Ela diz que o maior impacto do fracasso no pregão é atrasar ainda mais o cronograma do Programa Nacional de Imunização (PNI).
— Já estamos atrasados, e pelo jeito vamos atrasar mais ainda. A aquisição de vacinas não está fácil, é óbvio e esperado que o mundo inteiro está atrás de seringa e de agulha. Esse tipo de providência deveria ter sido planejada meses atrás. Sabíamos que alguma vacina seria aprovada em algum momento e que precisaríamos de insumos — afirma Rosana.
O Ministério da Saúde foi avisado em julho pelo setor da indústria de artigos e equipamentos sobre a necessidade de acelerar a compra. A Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos e Odontológicos (Abimo) diz que, das cerca de 2 bilhões de seringas usadas por ano no país, fábricas brasileiras dão conta de 1,5 bilhão – o resto é importado, o que será afetado pela alta procura em função da pandemia.
O superintendente da Abimo, Paulo Henrique Fraccaro, pontua que o governo federal estipulou preços muito baixos para as seringas sem levar em conta o crescimento da inflação e o aumento na cotação do dólar, que impacta no preço do polímero, matéria-prima da seringa. Fraccaro afirma que a indústria “deixou de ofertar 115 milhões de seringas por uma questão de décimos de centavos”.
O porta-voz do setor diz, ainda, que o ministério poderia ter fatiado o pedido das doses para a indústria fornecer as seringas aos poucos e que deveria ter levado em conta que as empresas, além de atender ao pedido do governo federal, estão dando conta de compras feitas por São Paulo, Minas Gerais, Bahia e pelo consórcio de Estados do Nordeste, por exemplo. Fraccaro acrescenta que o ministério deveria “sentar para conversar” com a indústria e ajustar os preços ao valor de mercado.
— Não sei qual o caminho que fizeram para os preços de referência, mas, quando são fora da realidade, as empresas não conseguem atender ao pedido. Caberá ao governo chamar os três fabricantes nacionais com interesse em continuar ofertando as seringas para conversar e dar um final feliz a e essa equação — diz o superintendente da Abimo.
O presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Juarez Cunha, afirma que, como o governo brasileiro deve, infelizmente, contar com poucas doses nos primeiros meses do ano, o estoque de insumos do Ministério da Saúde, de Estados e de municípios deve ser suficiente para aplicar as primeiras vacinas contra a covid-19. No entanto, ele destaca que usar esse estoque implica queimar as reservas de insumos usados para imunizar contra outras doenças e mesmo para realizar exames de rotina, como coletas de sangue.
— A gente fica frustrado com o pregão, mas sabemos que os Estados têm estoques estratégicos. Ao menos na parte inicial da campanha, não vai faltar o produto. Mas, em algum momento, isso vai fazer falta e o governo terá que fazer essa reposição dos estoques utilizados, até porque há outras medicações e vacinas que usam seringa e agulha — diz Cunha.
O estoque do Estado
Em planejamento prévio feito com base na campanha de vacinação contra a gripe, o Ministério da Saúde projeta que o Rio Grande do Sul vacinará 4,1 milhões de pessoas em grupos prioritários contra o coronavírus. Na primeira etapa, seriam 971 mil pessoas.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) informou, no início de dezembro, que possui 4,2 milhões de seringas, o que permitiria vacinar os primeiros grupos prioritários.
A GZH, a secretária de Saúde do Rio Grande do Sul, Arita Bergmann, afirma que o cenário de falta de seringas se assemelha à escassez de equipamentos de proteção individual (EPIs) e testes no começo da pandemia, mas cita que o governo gaúcho tem estoque de seringas para dar início à campanha de vacinação.
— Aqui no RS, temos esse estoque de seringas de 4,2 milhões e, no dia 7, abre o pregão de compras para mais 10 milhões de doses. Vamos esperar para ver se vão aparecer interessados — afirma Arita. — As 4,2 milhões de doses são o suficiente para imunizar todos os grupos elegíveis na primeira fase da campanha de vacinação. Acreditamos que o Ministério da Saúde deve lançar logo novo pregão. Temos seringas o suficiente para começar a campanha — acrescenta.
A Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) lamenta o fracasso no pregão federal e diz que, em reunião na primeira semana de janeiro com o governo do Estado e o Consórcio de Municípios da Região Metropolitana (Granpal), haverá definição se prefeituras e Piratini irão comprar os insumos por conta própria para assegurar as vacinas aos gaúchos.
— Claro que municípios têm algo em estoque com o normal que as secretarias de Saúde trabalham, mas a quantidade de doses necessárias para a vacinação contra a covid-19 exige que o governo federal assuma a tarefa. Infelizmente, é uma tragédia anunciada, mas a gente espera que o pregão se repita — diz Maneco Hassen, presidente da Famurs.
O dirigente diz que há risco de o Brasil ter vacinas, mas não haver seringas para imunizar a população.
— O deserto no pregão do Ministério da Saúde é a prova de que isso pode acontecer. É uma preocupação enorme. Se não funcionar, vamos trabalhar em um plano B. Se chegar em meados de janeiro e a gente visualizar que não virão seringas, vamos tomar providências em conjunto com o governo do Estado — acrescenta Hassen.