Ao dizer, nesta terça-feira (7), que testou positivo para coronavírus, Jair Bolsonaro voltou a fazer manifestação pública em defesa da hidroxicloroquina como terapia para a covid-19. Em entrevista no Planalto, disse que teve febre, mas que já está melhor, e creditou o bom estado de saúde ao uso preventivo do medicamento, indicado para a malária e doenças reumatológicas.
No sábado (4), o presidente já havia reavivado o debate em torno da droga que protagoniza uma das mais ruidosas polêmicas da pandemia de coronavírus. Em visita a Santa Catarina, ele defendeu o uso do medicamento como "único tratamento que temos no momento".
— Estamos tendo notícias de que, cada vez mais, não só no Brasil, mas no mundo, o tratamento precoce via hidroxicloroquina tem surtido efeito. Então, nós apelamos para aqueles que ainda resistem, no tocante a esse protocolo, que realmente entendam que o único tratamento que temos no momento é a hidroxicloroquina, enquanto não chega a vacina — disse o presidente em entrevista ao Grupo ND, após sobrevoar áreas atingidas pelos temporais da semana passada.
Também no sábado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a suspensão dos testes com a substância que estavam em andamento em diversos países, engrossando o rol de instituições que abandonaram suas apostas no composto. Um dos mais ferrenhos defensores da droga é o controverso microbiologista Didier Raoult, do Instituto Hospitalar Universitário Méditerranée Infection, em Marselha, na França.
No Brasil, em maio, uma recomendação do Ministério da Saúde para administração da cloroquina e da hidroxicloroquina (versão da cloroquina), combinadas com o antibiótico azitromicina, para doentes com sintomas leves, provocou receio e contrariedade em grande parte da comunidade médica.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), entre outras entidades no país, já havia se posicionado contra o parecer do ministério para a utilização rotineira da cloroquina e da hidroxicloroquina, alegando a ausência de comprovação de eficácia. Na semana passada, o informe número 15 da SBI sobre o coronavírus ressaltou que, até o momento, os principais estudos clínicos "não demonstraram benefício no tratamento de pacientes hospitalizados com covid-19 grave", e o uso no período inicial da doença, em casos leves e moderados, "está sendo avaliado e se aguardam os resultados".
Não podemos indicar algo que não tem evidência científica só porque o presidente quer ou porque um colega indica
LESSANDRA MICHELIN
Diretora da SBI
O documento acrescenta a ocorrência de efeitos colaterais e lista outros órgãos contrários à cloroquina e à hidroxicloroquina fora do âmbito da pesquisa clínica: a FDA, agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos, a Sociedade Americana de Infectologia e o Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano.
— Não mudamos a nossa opinião. Há, sim, estudos em andamento, mas não temos evidência, neste momento, para indicar (cloroquina e hidroxicloroquina) em nenhuma fase do tratamento. Não podemos indicar algo que não tem evidência científica só porque o presidente quer ou porque um colega indica — comenta a infectologista Lessandra Michelin, diretora da SBI.
Na fase inicial da covid-19, o paciente desenvolve sintomas e apresenta um quadro de síndrome gripal. Até o sétimo dia (a contar do início dos sintomas), se houvesse um antiviral com atividade comprovada, o uso precoce seria o ideal, explica a infectologista Teresa Sukiennik, gerente de Segurança Assistencial da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Existem relatos, segundo Teresa, de pacientes tratados com cloroquina e hidroxicloroquina que não precisaram ser internados, mas a simples afirmação de um médico sobre a boa evolução do quadro desses indivíduos não serve como parâmetro para guiar a conduta geral. Sem a conclusão e a publicação de estudos robustos, com revisão de dados, inexiste comprovação científica — trata-se, apenas, de "palpite", conforme a médica.
— Talvez tenha (benefício), mas ninguém publicou nenhum dado de forte evidência até o momento. Existem estudos publicados, a maioria com pacientes internados, e todos são péssimos. Um estudo não tem que provar que o pesquisador está certo, mas, sim, testar uma hipótese. Tem sido uma questão muito mais de filosofia, de "melhor fazer isso do que nada", do que de comprovação científica — esclarece Teresa.
Um estudo não tem que provar que o pesquisador está certo, mas, sim, testar uma hipótese. Tem sido uma questão muito mais de filosofia, de "melhor fazer isso do que nada", do que de comprovação científica
TERESA SUKIENNIK
Gerente de Segurança Assistencial da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
Ela afirma que é angustiante, para um médico, não conseguir agir de modo a tentar curar o paciente sob seus cuidados, sensação que leva profissionais a prescreverem essas duas substâncias.
— A cloroquina e a hidroxicloroquina têm sido muito utilizadas. Tem muitos médicos prescrevendo-as para o paciente que vai para casa. Mas, do ponto de vista científico, não temos evidência para isso. Não temos um estudo em que um grupo usou a medicação comparado a um grupo que não a usou para saber se houve diferença de desfecho — constata Teresa.
A especialista lembra que há possibilidade de uso compassivo ou off label dessas drogas, ou seja, a indicação para uma finalidade diferente daquelas para as quais foram desenvolvidas. O médico pergunta se o paciente está disposto a tomar um medicamento com potencial de dano. Caso concorde, o paciente assina um termo de consentimento informado.
Quando a covid-19 passa da fase viral para a inflamatória, uma inflamação danifica tecidos do corpo. Para doentes graves em unidades de terapia intensiva (UTIs), observa Teresa, a cloroquina e a hidroxicloroquina também não encontram sustentação na literatura científica.
— Em estudos com pacientes hospitalizados, fica claro que não existe benefício — diz a infectologista.
Ouça parte da entrevista de Bolsonaro nesta terça-feira
Remdesivir, ivermectina, dexametasona e plasma
Outros fármacos e terapias são empregados contra a covid-19, tornando-se também objeto de detidas avaliações. Sabe-se que, no estágio viral, não se deve ingerir ibuprofeno — recomendam-se hidratação, alimentação adequada, repouso e remédios para os sintomas específicos referidos pelo paciente. O antiviral remdesivir vem se mostrando capaz de reduzir o total de dias de internação, mas não foi possível comprovar a diminuição da mortalidade, afirma Teresa. A ivermectina, um antiparasitário (para combater vermes e parasitas), tem sido prescrita por profissionais e procurada pela população nas farmácias mesmo sem recomendação médica — ainda falta, também, o lastro da ciência para determinar se age, de fato, na prevenção e no tratamento da fase viral da covid-19.
Na etapa inflamatória, a dexametasona, um corticoide muito conhecido com poder anti-inflamatório, está demonstrando benefício para quem precisa de suporte de oxigênio, reduzindo também a mortalidade. Para doentes com risco de trombose ou embolia pulmonar, são indicados anticoagulantes. Nas últimas semanas, ganhou destaque a terapia com o plasma do sangue de pessoas infectadas pelo coronavírus que se recuperaram — essa indicação, entretanto, restringe-se a situações bem específicas. O cuidado ao paciente crítico, incluindo-se o adequado manejo da ventilação mecânica, pontua Teresa, é determinante para a sobrevivência daqueles que padecem dos quadros mais preocupantes da covid-19.