Médicos ouvidos pela reportagem de GaúchaZH receberam com receio e contrariedade as novas recomendações do Ministério da Saúde para o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com covid-19. A partir de agora, doentes com sintomas leves da doença podem ser tratados com uma combinação de uma das duas drogas — indicadas para malária e doenças reumatológicas, respectivamente — com o antibiótico azitromicina. Os profissionais chegaram até mesmo a duvidar inicialmente do documento.
Ao ser questionado a respeito de sua opinião, Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), responde com outra pergunta:
— Você tem uma infecção que, em 90% das vezes, é leve e não vai causar nenhum problema. Por que usaria uma combinação de medicações que poderia te provocar uma arritmia cardíaca?
Na medicina, salienta o infectologista, é essencial que qualquer conduta parta do princípio de que não acarretará ainda mais mal ao paciente.
— Por que vou correr o risco de causar um dano que não é necessário? Esse é o ponto-chave — acrescenta Sprinz.
André Luiz Machado da Silva, infectologista do Hospital Nossa Senhora da Conceição, classifica a publicação de "temerária". Um caso leve de covid-19, explica o médico, resolve-se praticamente por si só. Recomenda-se que o paciente repouse e se hidrate. A depender dos sintomas, prescrevem-se analgésicos e antitérmicos. Silva aponta outras incongruências:
— Temos pacientes com sintomas sugestivos de covid-19 que não têm covid-19. Assim, eles podem estar se submetendo a uma medicação que tem efeitos colaterais. É uma medicação nociva em associação com outras classes de medicamentos, principalmente para cardiopatias. A arritmia, que é a alteração no ritmo cardíaco, pode levar à morte.
Ainda sobre a combinação de cloroquina ou hidroxicloroquina e azitromicina, o texto elenca contraindicações e riscos para determinadas enfermidades, mas destaca que "fica a critério do médico a prescrição, sendo necessária também a vontade declarada do paciente", que deve assinar um termo de ciência e consentimento.
— O Ministério da Saúde recomenda o uso, mas deixa lá, em letras pequenininhas, que, se o médico não quiser usar, não precisa. Se o governo está orientando isso e um paciente quiser tomar, como você vai convencê-lo do contrário? O ministério não se responsabiliza pela indicação nem pela não indicação, então vai cair tudo em cima de nós — critica Gynara Rezende, infectologista do Serviço de Controle de Infecção da Santa Casa de Porto Alegre. — Até que ponto podemos não recomendar o que o ministério recomenda? — complementa, em dúvida.
Além de citar a falta de comprovação científica para orientar o uso dos remédios, especialistas se surpreenderam com a baixa qualidade do material divulgado. O documento em PDF, intitulado Orientações do Ministério da Saúde para Tratamento Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da Covid-19, causou estranheza pelo layout — sem qualquer semelhança com outros documentos disponibilizados anteriormente —, pela ausência de data, timbre oficial e assinatura. Parecia um texto inacabado.
Em um grupo de WhatsAppp, infectologistas do Rio Grande do Sul trocavam impressões sobre a possibilidade de se tratar de um caso de fake news, retardando as respostas a pedidos de entrevista da imprensa por temerem se pronunciar a respeito de algo forjado fora dos domínios do governo federal.
— Estamos tentando confirmar a veracidade — disse uma infectologista à reportagem.
Logo, começou a circular entre os médicos uma segunda versão, maior e aparentemente mais caprichada do que a primeira, mas o ministério afirmou desconhecer a origem do material, assegurando que o documento válido era mesmo o mais sucinto. Do total de 14 páginas, sete são dedicadas à listagem de 76 referências bibliográficas — e aí foram identificados erros e imprecisões.
Há citações sem título, com abreviaturas apressadas entre parênteses, e o link da reportagem de um site de notícias, o que alguns não consideraram à altura de uma publicação com caráter científico, além de estar fora dos padrões técnicos. "Lamentável", escreveu um deles, argumentando que a liberação de um documento inconcluso reflete a desorganização que vigora na mais alta instância a comandar a saúde do Brasil.