Pivô da demissão do ex-ministro da Saúde Nelson Teich, o uso da cloroquina em pacientes com quadros leves de coronavírus foi indicado nesta quarta-feira (20) pelo governo federal, como já vinha sendo especulado. A nova orientação — até agora, o protocolo do Ministério da Saúde orientava a utilização do remédio apenas em casos graves — reacendeu o debate em torno do medicamento. Afinal, o que já se sabe sobre ele? O que apontam as pesquisas? Quais são os riscos?
Teich deixou o cargo sem comentar o assunto, mas o seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta disse, em entrevista à Folha de S.Paulo, que a medida pode provocar mortes em casa por arritmia (um dos efeitos colaterais da droga) e elevar a pressão por vagas nos hospitais.
— Se todos os velhinhos tiverem arritmia, vão lotar o CTI, porque têm muito mais casos de arritmia que (derivam de) complicação de covid. E vou ter que arrumar CTI para isso, e pode ser que morra muita gente em casa com arritmia — declarou Mandetta.
Cotada para assumir a vaga de Teich, a oncologista Nise Yamaguchi tem posição diferente: segue defendendo a prescrição do fármaco, inclusive para pessoas infectadas que ainda não tenham sido internadas, e argumenta que "cloroquina poderia ter dose menor". Ela também afirma que "vários médicos estão tomando hidroxicloroquina" e que a opção deveria ser estendida a todos.
— Se você trata precocemente, existe um benefício maior e você não evolui para uma necessidade de entubação, de internação — ponderou Nise, à Rádio Bandeirantes.
A médica reivindica uma distribuição mais ampla desses comprimidos, por entender que há uma emergência sanitária em curso e que não há tempo para esperar a conclusão dos estudos científicos em andamento.
Hoje, a cloroquina e o seu derivado, a hidroxicloroquina, usadas originalmente para tratar malária, já aparecem entre as drogas mais testadas no mundo contra a covid-19. Segundo a plataforma Clinical Trials, que reúne dados globais sobre testes de medicamentos, há, atualmente, cerca de 6,4 mil pesquisas em desenvolvimento.
De acordo com Luciano Goldani, professor titular de Doenças Infecciosas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os trabalhos mais importantes foram publicados de abril para cá. Ele cita, por exemplo, uma análise liderada por cientistas brasileiros em Manaus (AM).
— A maioria dos estudos publicados demonstra que a cloroquina não tem eficácia no tratamento da covid-19. Como já se sabia, os estudos também demonstram efeitos colaterais sérios. Novas medicações estão sendo estudadas por diversos pesquisadores com maiores potenciais, entre elas, o remdesivir (um antiviral) é o mais adiantado — diz o infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Editor do Brazilian Journal of Infectious Diseases, a revista da Sociedade Brasileira de Infectologia, Goldani sustenta que "não faz sentido" seguir insistindo na cloroquina e lembra que até o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, admirado por Jair Bolsonaro, chegou a abandonar o tema por algum tempo — embora, na última segunda-feira (18), tenha voltado à carga ao afirmar que decidiu tomar hidroxicloroquina por conta própria para se prevenir da covid-19.
Quatro pesquisas publicadas neste mês em revistas internacionais altamente conceituadas no meio científico (leia mais abaixo) sugerem que a adoção da medicação não trouxe ganhos efetivos aos pacientes — e um deles aponta que 10% dos doentes que usaram hidroxicloroquina tiveram problemas cardíacos.
— As evidências indicam o caminho inexorável da não utilização — opina o infectologista Claudio Stadnik, médico do Serviço do Controle de Infecção da Santa Casa, em Porto Alegre, e professor da Ulbra.
Ainda assim, o consenso está longe de existir. Enquanto isso, a decisão final sobre que tipo de medicamento deve ser usado, na avaliação do infectologista Renato Cassol, coordenador do Controle de Infecção do Hospital Nossa Senhora da Conceição, na Capital, deve ser discutida "entre médico e paciente", caso a caso, sem interferência governamental.
— Eu usaria alguma droga que ainda está em estudo nos meus pacientes privados, pois acho que, quando tivermos as melhores evidências de uso, a pandemia já estará no fim. Qual droga usar? Eu pesaria custos e benefícios, principalmente em relação aos possíveis efeitos adversos. Na minha opinião, todas as drogas deveriam ser usadas o mais precocemente possível. Inclusive a hidroxicloroquina, que tem menos efeitos colaterais. Mas essa é uma decisão entre médico e paciente. Não é algo que deva ser imposto, pois a autonomia do paciente sempre deve ser respeitada — destaca Cassol.
O que se sabe até agora
- Há registros de cerca de 6,4 mil estudos em andamento envolvendo os efeitos da cloroquina e de seu derivado, a hidroxicloroquina (menos tóxica), sobre a covid-19 no mundo, com diferentes níveis de confiabilidade e aprofundamento.
- Originalmente, essas substâncias vinham sendo utilizadas no tratamento de malária e de doenças como lúpus e artrite reumatoide, mas, há anos, pesquisadores sabem que esses fármacos têm efeito in vitro sobre os coronavírus.
- Com o surgimento da covid-19, teve início uma série de testes em pessoas, mas o assunto ganhou repercussão de fato quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, passou a defender o remédio como solução para a pandemia.
- Até agora, não há comprovação cientifica de sua eficácia e, no caso do Brasil, o medicamento acabou se tornando alvo de debate político.
O que dizem as últimas pesquisas
Pelo menos quatro pesquisas divulgadas neste mês em periódicos renomados — duas delas envolvendo mais de mil pessoas — chegaram a conclusões parecidas: por enquanto, não só inexistem evidências concretas de que o tratamento com hidroxicloroquina beneficie pacientes com covid-19, como é possível que sequer ocorra algum ganho. Dois desses estudos, publicados na conceituada revista científica The BMJ (British Medical Journal), na última quinta-feira (14), ainda reforçaram os possíveis riscos da medicação.
Um dos trabalhos citados foi realizado na China, entre 11 e 29 de fevereiro, com 150 infectados nas províncias de Hubei, onde surgiu a doença, Anhui e Henan. Vale destacar que apenas dois eram casos graves. Parte deles tomou hidroxicloroquina e parte não, e ambos os grupos receberam tratamento padrão (para atenuar os sintomas). Não houve diferenças significativas nos resultados e, entre os enfermos tratados com o medicamento, foram registrados mais efeitos colaterais gastrointestinais.
Outra pesquisa publicada no BMJ, liderada por cientistas franceses, analisou os dados de 181 pacientes de covid-19 entre 12 e 31 de março. Eles não estavam em CTIs, mas precisavam de oxigenação. Parte recebeu hidroxicloroquina e outra parte, não. Ao final, 76% dos enfermos que tomaram o remédio sobreviveram sem cuidados intensivos, assim como 75% dos que não tomaram. Como os colegas chineses, os franceses também identificaram efeitos negativos da hidroxicloroquina: 10% dos adoentados sofreram alterações cardíacas e tiveram que parar o tratamento.
Com um universo maior de participantes, outros dois estudos foram estampados nas revistas The New England Journal of Medicine, em 7 de maio, e Jama (Journal of the American Medical Association), em 11 de maio.
A pesquisa publicada no New England averiguou informações de 1.376 infectados tratados no Hospital Presbiteriano de Nova York, associado à Universidade Columbia e à Weill Cornell Medicine, entre 7 de março e 8 de abril. Conforme os autores, estatisticamente, não foram percebidos benefícios no uso da medicação. Eles concluíram que os "achados não apontam para a indicação do uso da hidroxicloroquina fora de testes clínicos".
O outro estudo, que saiu no Jama, envolveu 1.438 pacientes de 25 hospitais da região metropolitana de Nova York, internados entre 15 e 28 de março. Eles foram distribuídos em quatro grupos: um deles foi medicado com uma combinação de hidroxicloroquina e azitromicina; o outro recebeu somente hidroxicloroquina; um só ganhou azitromicina; e o último grupo não foi tratado com nenhuma das drogas citadas.
Os resultados foram os seguintes: 25,7% dos enfermos que receberam hidroxicloroquina e azitromicina morreram, assim como 19,9% dos que tomaram apenas hidroxicloroquina, 10% dos que ganharam só com azitromicina e 12,7% das que não tomaram nenhum dos remédios.
Antes disso, em 24 de abril, um levantamento brasileiro publicado no Jama, liderado por pesquisadores do Amazonas, já havia sugerido efeitos colaterais graves da cloroquina em vítimas da covid-19. Foram avaliados 81 casos severos entre 23 de março e 5 de abril em Manaus (AM). Eles receberam doses altas e baixas de cloroquina. De forma preliminar, os cientistas chegaram à conclusão de que pacientes críticos não deveriam receber dosagens altas do fármaco, devido ao potencial de adversidades do medicamento, especialmente se associado à azitromicina ou ao oseltamivir (Tamiflu).
O que diz a Sociedade Brasileira de Imunologia
A entidade divulgou, nesta segunda-feira (18), parecer científico declarando que "ainda é precoce a recomendação de uso" da cloroquina para o tratamento da covid-19. O documento é assinado por 22 membros do comitê científico e da diretoria da SBI.
Conforme a nota, "a escolha desta terapia, ou mesmo a conotação que a covid-19 é uma doença de fácil tratamento, vem na contramão de toda a experiência mundial e científica com esta pandemia". Esse posicionamento, segundo o texto, "não apenas carece de evidência científica, além de ser perigoso, pois tomou um aspecto político inesperado".
Com base "nas evidências atuais que avaliaram a utilização da hidroxicloroquina para a terapêutica da covid-19", a SBI conclui que "ainda é precoce a recomendação de uso deste medicamento (...) visto que diferentes estudos mostram não haver benefícios para os pacientes que utilizaram hidroxicloroquina". Por conta disso, "fortemente recomenda que sejam aguardados os resultados dos estudos randomizados multicêntricos em andamento, incluindo o estudo coordenado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), para obter uma melhor conclusão quanto à real eficácia da hidroxicloroquina e suas associações para o tratamento da covid-19".