Pesquisas envolvendo o uso do plasma sanguíneo de pacientes curados de covid-19 indicam um caminho promissor no combate ao coronavírus. Embora os testes em curso ainda não sejam conclusivos, a alternativa em análise anima especialistas e ganha espaço entre pesquisadores no Rio Grande do Sul.
Em Caxias do Sul, na Serra, o Hemocentro Regional (Hemocs) e o Hospital Virvi Ramos foram pioneiros no Estado ao testar a metodologia, com a primeira transfusão realizada no último dia 26 em um paciente em UTI. Na Capital, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) já recebeu aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para iniciar os estudos e deve começar o recrutamento de doadores ainda neste mês.
O foco dessas iniciativas é o mesmo: coletar o chamado plasma convalescente (de pessoas que já se recuperaram da covid-19) e injetar em enfermos com coronavírus ativo. A intenção, com isso, é de que os anticorpos presentes no material doado ajudem o doente a se recuperar mais rápido (veja os detalhes em perguntas e respostas no fim do texto).
A grande vantagem dessa técnica, segundo Leo Sekine, chefe do Serviço de Hemoterapia do HCPA e coordenador do projeto prestes a começar, é o fato de ser praticada há décadas e, portanto, ser bastante conhecida entre profissionais da saúde (no vocabulário médico, é chamada de aférese). A transfusão de plasma é realizada regularmente, por exemplo, em pacientes com sangramentos e problemas de coagulação, ao passo que a doação é parecida com o procedimento normal de doar sangue (veja como funciona no infográfico abaixo).
No caso da covid-19, ainda não há certeza sobre a efetividade do método, mas, ao contrário de medicamentos como a cloroquina ou hidroxicloroquina, "aparentemente existe uma sensação de segurança em relação ao perfil de efeitos colaterais", ressalta Sekine. Além disso, as conclusões preliminares são otimistas.
— Há muitos estudos chineses bastante interessantes. Nessa população específica, houve uma melhora em diversos parâmetros (após o uso do plasma convalescente), como tempo de internação e de ventilação mecânica. Mas, como há algumas diferenças em relação à população brasileira, temos de ter cuidado com a generalização — pondera Sekine.
Uma dessas análises, publicada em março no conceituado Jama (The Journal of the American Medical Association), envolveu cinco pacientes em estado crítico na China e concluiu que a transfusão foi seguida de melhora no estado clínico do grupo. Em outra inquirição chinesa, estampada no PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences) no fim de abril, os testes envolveram 10 enfermos graves. O epílogo foi semelhante: conforme os autores, os sintomas e parâmetros clínicos melhoraram após três dias e não foram observados efeitos adversos severos.
Mais recentemente, estudos de origem norte-americana ainda em fase de pré-publicação e em processo de revisão, divulgados pelo site medRxiv no último mês, também sugerem que a ideia merece crédito. Um deles, liderado por cientistas da Clínica Mayo e das universidades Johns Hopkins e Michigan State, envolveu 5 mil pessoas e constatou que o método é seguro. Uma investigação capitaneada pelo Houston Methodist Hospital com 25 internados chegou à mesma resposta.
Outro levantamento, conduzido pela Icahn School of Medicine at Mount Sinai, avaliou os efeitos da transfusão em 39 hospitalizados com covid-19. Ao final, classificou a técnica como "potencialmente eficaz", especialmente se adotada de forma precoce.
A profusão de ensaios e de resultados positivos, ainda que preliminares, é acompanhada de perto por Fabio Klamt, professor do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do RS (UFRGS). Ele teve covid-19, sobreviveu à infecção e doou plasma para a transfusão realizada em Caxias.
— Desde que saí da internação, passei a acompanhar a literatura científica mundial. Me tornei doador e acredito que essa técnica pode ajudar muita gente. Particularmente, estou torcendo muito pelo paciente que recebeu meu plasma, inclusive porque pode ser um caso icônico no Estado e estimular mais gente a doar — diz o docente.
O homem de 63 anos beneficiado pelo material obtido de Klamt estava em estado grave e vem apresentando progressos, segundo a médica intensivista Eveline Corrêa Gremelmaier, do Hospital Virvi Ramos.
— É cedo para uma avaliação definitiva, mas, do ponto de vista respiratório, ele melhorou. Além disso, não teve nenhuma reação adversa. Aos poucos, está despertando do coma — relata a profissional.
Autorizado pelo paciente, o procedimento teve o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Isso ocorreu a partir da definição de um protocolo elaborado pelo hospital em parceria com o Hemocs e a Secretaria Municipal da Saúde e da apresentação de um projeto de pesquisa, que ainda aguarda chancela. Eveline espera que seja possível dar continuidade ao estudo com outros enfermos e torce para que o Hemocs receba mais doações.
— Já que a gente não tem nenhum medicamento com resultados comprovados contra o coronavírus, o plasma convalescente é uma alternativa. Já foi utilizado na gripe espanhola, no ebola, no H1N1 e teve uma certa eficácia. A dificuldade, na verdade, é conseguir doadores e ter plasma para todos que precisam — avalia a médica.
Quem pode ser doador por aférese?
Os pré-requisitos são os mesmos da doação de sangue convencional. A pessoa passa por uma triagem clínica, em que se verifica hábitos de vida, doenças pré-existentes e medicamentos utilizados, e por uma triagem hematológica para examinar se há algum impeditivo (no caso de anêmicos, por exemplo). Por lei, as doações são permitidas para pessoas de no mínimo 16 e no máximo 69 anos.
Nas pesquisas envolvendo o coronavírus, o doador de plasma precisa ter sido diagnosticado com covid-19, estar sem sintomas há pelo menos 14 dias e ter um novo teste do tipo PCR negativo posterior à resolução dos sintomas.
Quanto tempo o doador fica ligado à máquina?
O tempo de coleta depende do componente a ser coletado e do calibre das veias do doador. No caso da coleta de plasma, o procedimento dura, em média, cerca de uma hora.
A doação por aférese é segura? O doador pode voltar a fazer as atividades normais após o procedimento?
Sim. Em geral, assim que termina a doação, a pessoa fica cerca de 15 minutos em observação (para o caso de haver uma queda de pressão, por exemplo, como em qualquer doação de sangue). Depois, recebe um lanche e é liberada. Quanto à segurança do processo, os médicos afirmam que não há riscos de contaminação e que a aférese é um método utilizado desde a década de 1970, portanto, amplamente conhecido. É usado principalmente para a doação de plaquetas.
O que é o plasma e por que ele pode ajudar no tratamento do coronavírus?
O plasma sanguíneo é formado principalmente por água, sais, proteínas e anticorpos. É a parte líquida do sangue e tem cor amarela e transparente. As pesquisas em andamento voltadas ao coronavírus envolvem a transfusão do plasma de um paciente curado (plasma convalescente) para um infectado. Com isso, os cientistas esperam que anticorpos presentes no plasma convalescente confiram imunidade a quem tem a doença. A hipótese é de que isso ajude a reduzir os sintomas da infecção e a carga viral no organismo. Pesquisas iniciais indicam resultados promissores, em especial quando a transfusão ocorre de forma precoce, no começo da doença.
O Rio Grande do Sul já está testando o uso de plasma no combate ao coronavírus?
Sim. Já está em teste em Caxias do Sul, a partir de uma parceria entre o Hemocentro Regional (Hemocs) e o Hospital Virvi Ramos. O Hemocs vem recebendo doações desde o fim de abril e, no último dia 26, foi realizada a primeira transfusão de plasma convalescente em um paciente de 63 anos com covid-19, internado na UTI do hospital. Ele segue sendo acompanhado pelos médicos.
Os interessados em doar plasma para o Hemocs devem ser homens de 18 a 60 anos que tiveram coronavírus (com confirmação em teste do tipo PCR) e que estão há mais de 28 dias recuperados da doença. É necessário agendar atendimento pelos telefones (54) 3290-4543 e (54) 3290-4580 ou pelo WhatsApp (54) 98418-8487. As doações não incluem mulheres porque, segundo o Hemocs, elas podem apresentar riscos de produzir anticorpos contra as células de defesa, por conta de períodos férteis e de gravidez ao longo da vida.
Além do Hemocs, o Serviço de Hemoterapia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre recebeu autorização em 23 de abril para iniciar uma pesquisa semelhante. A expectativa é de que o recrutamento de doadores comece ainda neste mês, quando serão divulgados os detalhes.
Como é feita a transfusão de plasma e quem pode receber?
A transfusão de plasma é feita como qualquer transfusão de sangue. O receptor recebe o líquido por via venosa. Mas, para isso, o sangue dele precisa ser compatível com o do doador. E, no caso específico das pesquisas envolvendo covid-19, o receptor deve ter a doença ativa no organismo.