Por Fábio Klamt
Professor do Departamento de Bioquímica da UFRGS
Com a pandemia da covid-19 assolando todas as nações e suas populações, opções terapêuticas para mitigar as mortes que se avolumam de infectados seguem limitadas. Embora existam diversos esforços da comunidade científica mundial para o desenvolvimento de regimes farmacológicos eficazes para o combate do vírus (vide o protocolo sugerido de uso de hidroxicloroquina + azitromicina), outras abordagens terapêuticas têm sido sugeridas (e implementadas) por diferentes sistemas de saúde. Nesse contexto, destaca-se o uso do chamado plasma convalescente de pacientes positivos para covid-19, mas já curados da doença, para o tratamento de pacientes em estado grave em UTIs – também usado de forma profilática para imunização passiva e temporária de agentes de saúde que estão diretamente expostos ao vírus (quadro clínico de enfermeiros, médicos intensivistas, pneomologistas, infectologistas, auxiliares de enfermagem e funcionários de limpeza, entre outros).
O uso de plasma convalescente para imunização passiva de pacientes acometidos por infecção viral e em estado grave remonta mais de cem anos atrás, na pandemia da gripe espanhola. Mas também foi aplicado mais recentemente – e com sucesso – para o manejo de pacientes acometidos com sars, H1N1 e ebola, entre outros surtos. Em todas as situações, demonstrou-se eficiente na redução da titulação viral, com aumento substancial da presença desses anticorpos inativadores/neutralizadores dos agentes infecciosos, com melhora geral de marcadores clínicos dos pacientes e com redução significativa no número de mortes e no tempo de internação nos leitos de terapia intensiva, além de baixo registro de efeitos colaterais.
Funciona assim: casos confirmados de infecção com covid-19 que receberam alta clínica, após cumprirem a quarentena obrigatória de 14 dias (como a que me encontro neste momento), tornam-se automaticamente doadores voluntários de plasma. Essas pessoas se apresentam aos bancos de sangue de seus municípios, onde, por meio do serviço de coleta padrão, seu plasma é recebido e tipado para o Sistema ABO/Rh e testado quanto à presença de outras infecções (HIV, HPV, hepatites) para, depois, ser separado, além de avaliado duas vezes quanto à presença da covid-19 (por método molecular).
Idealmente, a titulação da quantidade de imunoglobulinas M (IgM) e G (IgG) específicas para a covid-19 deve ser realizada por um método aprovado e regulamentado pelas agências reguladoras (caso do método de Elisa, por exemplo), para que o usuário possa ter uma ideia de qual o “poder inativador” que essa amostra potencialmente apresenta, já que o método todo se baseia na imunização passiva do paciente pós-transfusão pelos anticorpos presentes no plasma do doador.
O importante dessa abordagem é que ela é relativamente barata, rápida e utiliza a estrutura já estabelecida e amplamente espalhada pelo país, via bancos de sangue. Recruta, coleta, testa, estoca. Daqui a duas ou três semanas, quando a “bolha do número de casos” realmente terá explodido no nosso país, poderemos contar com mais essa opção terapêutica disponível. Mas temos de agir agora. Mobilizar e gerir todos os nodos dessa rede: doadores, profissionais de saúde, laboratórios de testagem e UTIs.
Hoje, já temos dois estudos disponíveis que servem como “prova de conceito” sobre o uso do método em pacientes com covid-19; um publicado em 27 de março (leia aqui) e outro em pré-impressão (leia aqui). Apesar do reduzido número de pacientes e da falta de controles clínicos e fatores confundidores, ambos demonstraram-se seguros e com resultados promissores. Mais importante, a agência reguladora norte-americana (FDA) já autorizou o uso de plasma convalescente para o tratamento da covid-19 tanto para estudos clínicos quanto para o uso emergencial no tratamento de paciente único, preparando e disponibilizando um guia para uso (este aqui). EUA, Alemanha, Itália e Reino Unido são alguns exemplos de países que estão liberando o uso do método como forma emergencial do manejo da covid-19 em pacientes graves.
Sou Professor da Departamento de Bioquímica da UFRGS e pesquisador na área biomédica há mais de 20 anos. Formei mais de 10 doutores e 20 mestres e publiquei mais de cem artigos científicos em revistas internacionais como Nature Cell Biology, Journal of Biological Chemistry, Biochemical Journal, OncoTarget, Cancer e Translational Psychiatry, entre outras, mas o mais importante é que escrevo agora isolado, cumprindo a minha quarentena de 14 dias, pois recentemente passei seis dias internado no Hospital Moinhos de Vento em isolamento por complicações decorrentes de uma pneumonia associada à infecção com covid-19. Eu, como algumas dezenas de outros apenas no Rio Grande do Sul, estarei nos próximos dias apto para ser doador de plasma convalescente.
Espero que o sistema de saúde brasileiro esteja pronto também.