A comerciante Andréa Brandão Chagas, hoje com 52 anos e moradora de Garopaba (Santa Catarina), afirma ter sido a primeira empreendedora a apostar em uma ideia que vendeu feito pão quente em Porto Alegre no final da década de 1990.
— Fui a São Paulo comprar matéria-prima para fazer artesanato e vi na rua uma minivan transformada em carrocinha. Pensei: está aí uma coisa que eu sei fazer muito bem. Todo mundo adora meu molho de cachorro-quente — conta ela, que foi a entrevistada da primeira reportagem sobre o assunto em Zero Hora, em 25 de maio de 1997.
Se Andréa foi ou não a pioneira na cidade, não há registros. Fato é que a combinação de dólar em baixa no início do Plano Real, a invasão de uma marca estrangeira em particular e, sobretudo, o desemprego, que saltou de 10,7% em 1995 para 19% em 1999 na Região Metropolitana, fez com que centenas de porto-alegrenses trilhassem o mesmo caminho. O que resultou em uma febre de minivans e em uma tremenda indigestão para a prefeitura.
Vender cachorro-quente no Centro Histórico se tornou uma alternativa de recolocação no mercado equivalente ao que seria, hoje, dirigir carros para transporte de passageiros. Mas isso só foi possível graças ao tempero coreano.
A invasão das Towners
Na esteira do Plano Real, em setembro de 1994, o governo federal anunciou também a diminuição da alíquota de veículos importados de 35% para 20%. A medida seria rapidamente revertida no ano seguinte, mas não sem antes chamar atenção da montadora coreana Kia para o mercado brasileiro.
A Asia Motors, marca que vinha sendo incorporada pela Kia, desembarcou no Brasil oferecendo duas concorrentes importadas para a Kombi, a Topic – que se tornou popular para o transporte escolar – e a pequena Towner. Contando com a Xuxa como garota-propaganda e com uma agressiva cadeia de distribuidoras, a marca exportou mais de 40,6 mil Towners ao Brasil até 1998, o que chegou a representar 10% do faturamento mundial da Asia Motors.
Especula-se que a popularização do veículo como carrocinha de comida não foi intencional. Foram os brasileiros que perceberam que o veículo tinha um porta-malas que abria para cima reto o suficiente para proteger da chuva um cozinheiro que instalasse seus apetrechos ali. Andréa relata que mandou fazer seu equipamento de cozinha em uma fábrica de materiais hospitalares em inox, mas, em dezembro de 1997, era possível comprar uma Towner em Porto Alegre já adaptada por R$ 16,7 mil – o kit hot dog com instalação a gás saía por R$ 1,8 mil.
Cada empreendedor abria as portas a exatos 16,7 mil cachorros-quentes de pagar o veículo, já que o lanche era vendido a R$ 1. Mas isso se a prefeitura permitisse.
A Smic e a caça aos cães
Ao instalar o seu Dog Street na General Câmara com a Rua dos Andradas, perto de um cursinho pré-vestibular, Andréa descobriu uma mina de ouro. Nos melhores dias, vendia 350 cachorros-quentes e 430 refrigerantes. Chegou a empregar cinco pessoas, entre vendedores e cozinheira. O Mercado Público servia como um grande fornecedor de insumos e todos estavam felizes, exceto as lancherias do Centro Histórico.
— Lembro de uma vez que a dona do Bob’s saiu lá de dentro para me xingar. Claro, era só eu abrir que a fila dela esvaziava. Mas eu ainda dava um arrego pra ela, porque só começa a vender às 18h, quando não havia mais fiscais da Smic (Secretaria Municipal de Produção, Indústria e Comércio) trabalhando — diverte-se Andréia.
Nos primeiros meses, as Towners se beneficiaram do limbo legislativo. A venda de cachorros-quentes era permitida por uma lei municipal de 1968, mas, para conter a proliferação das vans nas principais vias do Centro Histórico, a prefeitura se ateve a um trecho da legislação que proibia o comércio ambulante em veículos estacionados.
Ao longo de 1998, o Executivo municipal começou a cadastrar e a regularizar os veículos, mas se manteve irredutível sobre a área central. Os alvarás só eram emitidos para quem pleiteasse pontos de venda fora dos bairros Centro, Bom Fim e Farroupilha. Em agosto, a estimativa era de que 600 vans operassem em Porto Alegre. Como já eram mais salsichas do que bocas, as Towners deixavam de ser um negócio tão saboroso.
Morte no Oriente
Apesar da popularidade, a venda de cachorros-quentes em metrópoles brasileiras não foi o suficiente para salvar a Asia Motors de problemas financeiros. Em outubro de 1998, a Hyundai comprou a Kia e decidiu encerrar a marca, descontinuando seus veículos. Em 1999, o Brasil recebeu a maior parte das últimas frotas das minivans.
Deste lado do mundo, o fim da Asia Motors sepultou os planos de uma montadora da marca na Bahia. Um braço brasileiro da empresa chegou a ser montado e recebeu centenas de milhões de reais em incentivos fiscais, mas a matriz coreana provou na Justiça que nunca controlou a brasileira. O governo federal amargou um calote estimado em R$ 1,5 bilhão.
A mesma crise dos Tigres Asiáticos que atingiu as montadoras coreanas elevou o dólar em quase 50% na virada de 1998 para 1999. As distribuidoras da Asia Motors no Brasil foram se fechando, o que complicou a manutenção dos veículos importados por aqui.
Ainda que rápido, o fenômeno das vans foi tão significativo que acabou grafado em lei em Porto Alegre.
O que resta da matilha
As vans para venda de cachorro-quente foram tão populares que acabaram gerando uma classificação específica de alvará em Porto Alegre. Frente às mais de 450 Towners que solicitaram regularização na prefeitura em agosto de 1998, restam apenas oito veículos com a documentação em dia, conforme dados da Secretaria de Desenvolvimento Econômico.
Um dos sobreviventes é o Cachorro da Anita, localizado na esquina das ruas Anita Garibaldi e Doutor Fábio Nascimento Barros, no bairro Bela Vista. Há 21 anos, a Towner está sob orgulhosa responsabilidade de Paulo Matias, 45 anos. Para se manter regularizada, a van passa por vistoria a cada dois anos, e Paulo repete, periodicamente, cursos contra incêndio e de boas práticas na cozinha.
Já o preço do cachorro-quente inflacionou: o mais barato, com duas salsichas, sai por R$ 16. Apesar da redução do movimento na pandemia, Paulo se diz satisfeito e não pretende mudar de ramo. Conhecido e respeitado na vizinhança, ele mora em um prédio em frente ao veículo e mantém a venda ativa das 11h30min às 23h. Aos finais de semana, roda pela cidade com a van para manter o veículo em bom estado.
— Tem uns modismos, né? Primeiro foi van de cachorro-quente, depois todo mundo virou corretor de imóveis. Em seguida foi instalador de split, motorista de aplicativos e agora é instalador de placas de energia solar. No fim das contas, fica em um ramo mesmo quem tem disposição para trabalhar — opina.
Uma nota curiosa é que, por ter alvará específico para “comércio ambulante de cachorro-quente em veículo (Towner)”, Paulo teve de importar uma nova van da marca para substituir a sua após um acidente. Por sorte, entre 2009 e 2012, a marca chinesa Hafei voltou a fabricar o veículo e Paulo adquiriu um modelo 2011.
Conforme o secretário-adjunto de Desenvolvimento Econômico, Vicente Perrone, a prefeitura não está satisfeita com a regulamentação do comércio ambulante na cidade, que deverá ser modernizada em 2022. O desafio é coibir problemas como a da venda de álcool ao ar livre em bairros como Cidade Baixa e Moinhos de Vento, mas não a ponto de inviabilizar o ganha-pão de empreendedores, como ocorreu na década de 1990 e ainda ocorre hoje.
— Temos cerca de 40 foodtrucks registrados em Porto Alegre, algo irrisório para o potencial da cidade. E eles ainda precisam obedecer a uma distância de 500 metros de restaurantes. Na minha opinião, se um restaurante oferece um serviço que não suporta a existência de um truck por perto, esse estabelecimento tem problemas — comenta.
Andréa, do Dog Street, vendeu sua Towner cerca de dois anos depois do início do negócio, quando desconfiou que seu marido à época, que era servidor da prefeitura, estava sofrendo represálias por sua causa:
— Tenho um misto de nostalgia e de mágoa daquela época. Eu adorava e fiz um bom dinheiro, mas, se tivessem me deixado trabalhar em paz, poderia estar lá até hoje.