O ano é 1952. As estradas são de chão batido, os imóveis, em grande parte, ocupam vastos lotes rurais e a tecnologia parece mais distante do que os 20 quilômetros que separam a então localidade da Ponta Grossa e o centro de Porto Alegre. No recém-inaugurado edifício dos Diários Associados — rede de emissoras do empresário Assis Chateaubriand —, a primeira televisão da comunidade é instalada, montada peça a peça por um dos funcionários da Rádio Farroupilha.
— Era a “televizinha”, como chamavam, porque todo mundo vinha assistir televisão aqui na estação. Engraçado, temos a história do rádio e da TV nesse local — relembra o advogado Sidney de Andrade Emerim, 71 anos, atual vice-presidente da Associação dos Moradores da Estrada Retiro da Ponta Grossa (Amoerp).
O prédio manteve a transmissão da rádio até 1986, primeiro no AM 600 e posteriormente no AM 680. Serviu de base para troca de recados entre vizinhos, além de prestar um serviço que se assemelhava ao de uma central telefônica, para urgências e emergências — na época, a região era uma das mais remotas da cidade. Sem qualquer igreja próxima, os filhos dos fiéis eram catequizados pela esposa de um dos administradores, nos domingos de manhã. O contraste ocorria na noite anterior, com animados bailes que reuniam a vizinhança.
Em 1974, um incêndio nos estúdios da Farroupilha, localizados no Morro Santa Tereza, levou os radialistas a migrarem de forma improvisada para a estação. Durante três dias, os programas foram apresentados na sede, que tinha exclusivamente a retransmissão do sinal.
Com a migração da tecnologia, que passou a ser via satélite, a estrutura deixou de ser utilizada, e o visual do pomposo edifício acabou deteriorada, em duas décadas de abandono — uma permuta repassou ao município a posse dos 30 hectares no início dos anos 2000. Pela lei municipal 12266/2017, virou Área de Preservação Permanente (APP).
Visitas por agendamento
O cenário atual é distinto das fotografias em preto e branco. O mobiliário do período funcional foi quase todo saqueado, e a antena de 150 metros destruída. Permanecem sobre o piso — em bom estado — alguns canos que resfriavam a mesa operacional.
No saguão do segundo andar, impressiona um exaustor valvulado, maior do que um carro de passeio, iluminado pelas amplas janelas da arquitetura colonial espanhola. Da Estrada Retiro da Ponta Grossa se veem uma sacada à direita e uma marquise com colunas salomônicas no lado oposto da fachada.
Uma faixa abaixo dos vitrais localiza quem não conhece a edificação: “Antiga Estação Transmissora da Rádio Farroupilha, patrimônio histórico da comunidade ponta-grossense".
Apesar das marcas do tempo e da falta de manutenção, histórias como a da primeira televisão do bairro seguem vivas, relembradas em um tour guiado pelo historiador Vagner Eifler.
— Foi uma referência para a comunidade, e queremos que continue como um patrimônio que conte a história dessa região. Sem significado, esse prédio é só uma pilha de tijolos — compara o pesquisador.
Até o início de 2020, as visitas ocorriam no primeiro domingo do mês. Foram suspensas na pandemia e, atualmente, podem ser agendadas pelas redes sociais: no Instagram @farroupilhapg ou no Facebook.
O historiador carrega consigo banners informativos, com os detalhes da operação. Mas são as curiosidades, contadas a ele por parentes dos ex-funcionários, que atraem os visitantes.
— Está vendo aquela marca ali no teto? Dizem que um morador tomava banho no Guaíba e se afogou. Quando se deslocavam para avisar aqui na estação, o operador se assustou: o reboco caiu no chão, em forma de corpo. Se for revitalizado, tem que manter aquela marca – se diverte Eifler, que entrevistou familiares em busca de recontar a história do local.
Potencial para transformar
A família do engenheiro civil Ruben Drescher, 72 anos, é envolvida com a construção desde sua concepção. Seu pai instalou as calhas que até hoje são vistas no terraço, e Ruben batalha para tornar o espaço um centro para a comunidade.
— Aqui tem potencial para planos maiores, que mantenham a preservação ambiental, mas que contem a história do rádio gaúcho. Nós, da associação, não temos recursos financeiros, somos os zeladores do local — afirma o engenheiro, presidente da Amoerp.
Não raros, são recebidos no endereço estudantes que retratam o edifício em trabalhos de conclusão de curso, nas áreas de arquitetura, engenharia e comunicação.
A convite de GZH, os dirigentes da associação visitaram o prédio, na manhã desta terça-feira (17), data em que é celebrado o Dia do Patrimônio Histórico, em todo o Brasil. A dupla apontou para as áreas ociosas, defendendo serem potenciais salas de reprodução audiovisual e de cursos para a população. Tablados vazios poderiam ter aula de dança e outras lições de história e cuidados com o meio ambiente, complementam Ruben e Sidney.
Perito em construções, o presidente da Amoerp aponta para ferragens expostas no forro e manchas de umidade nas paredes, marcas do longo tempo sem telhado — estrutura que também foi vandalizada. Drescher refuta a afirmação de que a construção está condenada pelos problemas vistos.
— Precisamos de uma reforma estrutural, para transformar esse espaço. Ainda são planos potenciais, mas para isso sair do papel precisamos de parceiros. E tem muita história aqui — reitera o orgulhoso morador da Ponta Grossa.
O local que ganhou página inteira no jornal Diário de Notícias de 17 de junho de 1956, com a manchete de “maior potência radiofônica do sul do Brasil”, ainda existe. Com investimentos, deixará de ser uma ruína apenas com o passado retratado.
Procurada, a prefeitura afirmou que em breve pretende se manifestar sobre os planos vislumbrados para a área, tanto na área cultural quanto de preservação ambiental.
Ouça a reportagem, veiculada ao vivo da estação, na Rádio Gaúcha