Com gosto de missão cumprida, o restaurante Corcovado, no coração do Centro Histórico de Porto Alegre, fechou as portas no começo do mês. Após 51 anos de funcionamento, o dono do espaço, o português José de Jesus Santos, 73 anos, decidiu que era hora de descansar da rotina corrida de quem manteve um bufê aberto ao público diariamente e fechou o comércio no último dia 6.
Apesar das restrições impostas em 2020 pela covid-19, De Jesus, como é conhecido, relata que a pandemia não influenciou a decisão. Segundo ele, a família já planejava encerrar o negócio há alguns anos. E, mesmo com as dezenas de mensagens deixadas na página do restaurante quando o fechamento foi comunicado, o empresário decidiu que era hora de se dedicar a um novo projeto:
— A gente sabe que tem que se preparar para as coisas da vida, mas nunca estamos preparados para o adeus. No último dia em que trabalhamos, não consegui ficar até o fim, porque passa muita coisa na cabeça da gente. Eu vivi histórias maravilhosas. Mas sinto que devo me dedicar aos meus netos. Já sou muito realizado pela relação que tenho com minhas filhas. Agora, quero ter isso com eles também, quero deixar um legado imaterial a eles.
Passadas algumas das restrições da pandemia, De Jesus conta que fez questão de reabrir o espaço, na Avenida Borges de Medeiros, para encerrar a jornada da forma que considera digna:
— Eu não queria fechar o restaurante com a história da pandemia, silenciosamente. Eu queria abrir de novo e dizer: "Eu estou aqui". Ver meus clientes, saber como estão, matar a saudade. Muitos deles já sabiam que logo iríamos fechar, mas a gente merecia essa despedida — conta.
Ultimamente, o local atuava com seis funcionários e um bufê servido diariamente. Na lista dos preferidos da clientela, estão o bacalhau às natas e à Gomes de Sá e o bife e a sobrecoxa na chapa. O pastel de bacalhau e a salada portuguesa também integram os mais pedidos da casa. Tudo, conta De Jesus, feito da maneira que aprendeu com a mãe portuguesa.
Tradição de pai para neta
Dentre as muitas histórias que ocorreram no restaurante, uma em especial permanece viva na memória do empresário: a da família que passou a tradição de ir ao restaurante de avô para neta. Ele conta que, numa tarde, foi questionado por uma cliente se recordava dela, e De Jesus negou. Em seguida, a mulher explicou a visita:
— Ela me disse: "O meu pai e a minha mãe moravam aqui perto e vinham no bar para relaxar. Depois, eu nasci e vinha aqui com meu pai. Só que me mudei e não moro mais aqui. Mas hoje estou na cidade e queria apresentar para minha filha o bar que os avós dela frequentavam". E fui eu que atendi os pais dela! Tem coisa mais maravilhosa que isso? É algo que não tem preço.
Família escolheu Porto Alegre em 1950
O trabalho no restaurante começou em fevereiro de 1970, quando De Jesus abriu o negócio, aos 22 anos. Ele começou a trabalhar aos 12: primeiro entregava pão, depois virou ajudante de padeiro. O amor pelo comércio ele herdou do pai, um imigrante que chegou ao Brasil em 1950, quando De Jesus tinha quatro anos.
Recém-chegado, o pai começou a trabalhar como funcionário em uma lanchonete, como empregado, e montou o próprio negócio alguns anos depois.
— A minha mãe gostou tanto de Porto Alegre que não queria mais voltar para Portugal. Então ficamos. Eu brinco que nasci atrás do balcão. E isso me fascinou desde muito pequeno. Fui me apaixonando pelo contato com os clientes, as conversas, essa troca. Até cheguei a cursar alguns anos de Engenharia, mas depois desisti, vi que minha praia era o comércio.
Anos depois, o empresário atuou também como presidente do Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região (Sindha), onde conta ter aprendido sobre como qualificar serviço e mão de obra.
De todas as funções que realizava no restaurante — da cozinha ao financeiro —, De Jesus destaca gostava mesmo era de atender. Com os clientes que tinha intimidade, ele muitas vezes sentou a mesa para conversar. Também se certificava de circular pelo espaço e perguntar aos clientes como estava a comida.
— Eu digo que o restaurante é a extensão da sala da casa da gente. O cliente precisa de um espaço agradável, calmo, sadio. Ele precisa chegar no local e descansar, desligar da rotina do trabalho, dos problemas. E eu tenho prazer em servir, essa interação sempre foi o que mais me encantou. É o cliente que nos ajuda a melhorar nosso negócio.
Ensinamento do pai foi útil na pandemia
Diante do avanço do coronavírus, o empresário viu a casa fechar entre março e outubro do ano passado. Atualmente, o restaurante havia retomado 60% das vendas, na comparação com um período normal. Mas o empresário afirma que, ao longo da trajetória, aprendeu a poupar para os momentos difíceis:
— Quando eu ainda era pequeno, no comércio do meu pai, ele abria a caixa registradora e dizia: "Está vendo esse dinheiro? Você precisa saber qual é o teu". Ele me falava isso há 60 anos. Quando você é empresário, precisa saber que alguns meses não vão ser bons, precisa ter uma reserva.
Agora, com o encerramento do restaurante, a agenda de compromissos do empresário tem um tom mais informal: ele tem se aproximado das atividades dos netos, que leva para aulas de ginástica e tênis, por exemplo. Em casa, é o responsável pelo preparo de almoços e jantas. Para o começo de 2022, De Jesus planeja uma viagem com a família para Portugal, para onde não viaja desde 1989.
Um novo projeto, também no ramo do comércio, já está sendo desenvolvido por ele, mas a novidade ainda é segredo.